Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

1. Em português, haveria um gentílico para Latgália, ou Latgale, antiga região da Letônia?

Quanto à forma do topônimo, qual das duas acima elencadas seria a melhor?

2. Qual seria o gentílico da Selônia, antiga região da Letônia?

3. Qual seria o gentílico da Semigália, ou Semigola, antiga região da Letônia?

Quanto à forma do topônimo: qual das duas acima elencadas seria a melhor?

4. Qual seria o gentílico de Vidzeme, antiga região da Letônia?

Resposta:

Os corónimos em apreço não parecem ter tradição nem apresentar forma estável em português. O mesmo se pode dizer dos respetivos gentílicos. Mesmo assim, apresento breves comentários sobre cada um deles:

1. Latgália

Esta forma apresenta uma sequência que é muito pouco frequente em português (ocorre só em derivados de nomes estrangeiros). Deste modo, seria de esperar que o t fosse seguido de uma vogal de apoio, e, o que significa que a grafia deveria ser "Lategália". Trata-se, no entanto, de uma forma não atestada, que aqui se apresenta a título de sugestão.

2. Selónia e Semigália

São formas aceitáveis à luz dos critérios ortográficos do português.

3. Vidzeme

A sequência "dz" é pouco frequente na ortografia portuguesa. Mesmo assim, registam-se formas como adzáneni, «[indivíduo do] grupo indígena que teria habitado na cabeceira dos rios Caiarí e Apuí, fronteira do Brasil com a Colômbia», dzeta, com a variante zeta, «nome da sexta letra do alfabeto grego» (ζ e Ζ), ou dzimba, «o mesmo que tamanduá», pelo menos, no Dicionário Houaiss, as quais permitem legitimar a forma Vidzeme.

Como é de esperar, se estes nomes não têm forma conhecida ou estável em português, o mesmo se pode dizer dos respetivos gentílicos. Várias opções se oferecem: ou se obtém o gentílico por sufixação — "lategaliano", "seloniano", ...

Pergunta:

Qual o nome coletivo de crianças?

Resposta:

Há várias opções, sendo provavelmente as que mais depressa vêm à memória criançada, pequenada, garotada, meninada. O Dicionário Houaiss regista ainda outras, usadas no português brasileiro, mas não no lusitano: gurizada e gurizeiro (esta última indicada como regionalismo do Rio Grande do Sul), claros derivados de guri, palavra empregada apenas no Brasil.1 Em Portugal, também se diz miudagem, no registo informal, e, em estilos ou dialetos regionais, sobretudo no Norte, não é raro ocorrer canalha, com certo tom pejorativo, e, noutras regiões do continente, catraiada, de catraio, «criança pequena». Refira-se, por último, petizada, derivada do já antiquado petiz (cf. Dicionário Houaiss).

1 Guri tem origem no tupi gwï'ri, "bagre [peixe], bagre novo, p.ext. criança" (Dicionário Houaiss). A palavra é também usada no espanhol da Argentina e do Uruguai com a grafia gurí.

 

CfA origem da palavra «criança»

Pergunta:

Os termos teste, exame e prova, quando usados no contexto de avaliação das capacidades e conhecimentos académicos ou profissionais de alguém, podem ser considerados sinónimos entre si? Ou, tendo cada um o seu emprego específico, de que forma são usados?

Obrigado.

Resposta:

De acordo com a generalidade dos dicionários de referência consultados, os três vocábulos estabelecem entre si uma relação de sinonímia:

Exame: «prova destinada a avaliar a aptidão ou os conhecimentos de um aluno ou candidato a algum cargo, função, etc.; teste; prova» (Dicionário Houaiss); 

Teste: «Prova para avaliação do saber ou da inteligência. = EXAME» (Dicionário Priberam); 

Prova: «exame ou concurso; teste» (Infopédia). 

A este propósito, será interessante notar que nos Exames Nacionais dos Ensinos Básico e Secundário, por exemplo, da responsabilidade do Ministério da Educação e Ciência, o que se lê nos enunciados não é «exame», mas, sim, «prova escrita».

Pergunta:

Em 30-09-11, a vossa consultora Sandra Tavares diz numa resposta: «As duas palavras não sofreram alteração com o novo Acordo Ortográfico, mantendo a grafia anterior: luso-africano e lusodescendente

Todas as fontes que consultei (como os dicionários online, o dicionário da Academia das Ciências e o prontuário de D´Silvas Filho) apontam para luso-descendente como grafia pré-AO. Por outro lado, encontrei esta explicação num blogue: «Rebelo Gonçalves, no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, recomendou o uso de hífen nos "compostos em que entram, morfologicamente individualizados e formando uma aderência de sentidos, um ou mais elementos de natureza adjectiva terminados em o e uma forma adjectiva". Exemplos? Físico-químico, póstero-palatal, trágico-marítimo, ântero-inferior; latino-cristão, grego-latino, afro-negro."

Escrevíamos mesmo "lusodescendente" antes do Acordo Ortográfico, ou trata-se de um lapso?

Obrigado.

Resposta:

Escreve-se sem hífen: lusodescendente, ao abrigo quer do Acordo Ortográfico de 1945 (AO 45) quer da nova ortografia. A estrutura de lusodescendente, como a de lusófono e lusofalante (Dicionário Houaiss), palavras que terão surgido anos depois do AO 45 (cf. idem), não é a de um composto formado por coordenação como luso-francês, mas, sim, a de um composto em que luso se comporta como um radical que modifica descendente – trata-se, portanto, de uma estrutura equivalente ou semelhante à dos chamados compostos clássicos (hidrografia, agricultura) e à dos híbridos (monocultura), cujos elementos se aglutinam, dispensando o hífen. Ou seja, em exemplos como físico-químico (=«físico e químico») ou trágico-marítimo (= «trágico e marítimo»), verifica-se a coordenação de dois atributos; pelo contrário, com lusodescendente pretende-se encarar a relação de descendência com a nacionalidade portuguesa, e não definir uma simultaneidade entre ser descendente e ser português.

Cf. Luso-africano e lusodescendente

CfBase XVIII das Bases Analíticas do Acordo Ortográfico...

Pergunta:

Estava eu estudando latim e percebi que alguns substantivos da língua portuguesa aparentam derivar sua forma não do nominativo, mas sim do ablativo, como em: pons, is, abl. ponTE; dens, is, abl. denTE; mons, is, abl. monTE; urbs, is, abl. urBE; avis, is, abl. avE; nox, is, abl. nocTE. Gostaria de saber como e por que causa se verifica essa aparente origem e também o porquê de nossa língua não ter declinações como o latim. Desde já agradeço-vos pela resposta e congratulo-vos pelo excelente trabalho de elucidar a língua nossa neste pantanoso terreno da Internet.

Resposta:

Em geral, os substantivos e os adjetivos do português provêm não do ablativo, mas, sim, do caso acusativo, com queda do -m final (é o chamado caso etimológico), tal como era típico do latim vulgar: PONTE(M) > ponte (os exemplos do consulente cabem todos neste tipo de declinação); CAUSA(M) > coisa; PORTU(M) > porto.

Existem, no entanto, vestígios do ablativo na etimologia de certos advérbios: HAC HORA > agora; HAC NOCTE > ontem.

Quanto à razão de a nossa língua não ter declinações como o latim, pensa-se que a evolução fónica muito contribuiu para confundir as diferentes formas dos casos. Sobre este assunto, leiam-se as respostas Sobre a evolução das palavras latinas para o português, Casos de novo e Traços dos casos latinos no português.