Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Equestre é uma estátua de alguém a montar um cavalo, e equina é apenas a estátua de um cavalo. Gostaria de saber o significado dos sufixos e de que forma alteram o referente.

Resposta:

Ambos os sufixos se associam a substantivos para formar adjetivos. O sufixo -ino sugere o que é próprio do referente do substantivo a que se associa: «pele equina» = «pele de cavalo». Com o sufixo -estre, o significado é muito próximo de -ino e em certos casos não se nota diferença assinalável: uma «paisagem alpina» pode ser uma «paisagem alpestre», embora no primeiro caso se saliente mais a ligação aos Alpes. No caso de equestre, o sufixo permitiu a especialização do adjetivo, que se refere sobretudo à relação com a cavalaria, em lugar de remeter diretamente para os cavalos. Daí «estátua equestre», e não «equina», porque a expressão se aplica à representação de um cavaleiro e da sua montada.

Pergunta:

A propósito de um anúncio publicitário da Siemens onde se lia «A inovação é garante de um Portugal sustentável», fiquei com as seguintes dúvidas:

1) Não seria mais correcto usar a expressão «é a garantia de...»?

2) Insistindo no uso de garante, não seria mais correcto anteceder o substantivo de um artigo definido, no caso concreto o, resultando na expressão «é o garante de...»?

Obrigado pelos esclarecimentos e por um site fantástico.

Resposta:

A palavra garante está registada como variante de garantia em alguns dicionários. Do ponto de vista estritamente linguístico, não parece haver problema no seu uso, mas, na perspetiva normativa, há autores que condenam garante e até a própria palavra garantia. É o que faz Rodrigo de Sá Nogueira (Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem, Lisboa, Clássica Editora, 1989): «garantia. É termo já inveterado [...] Pior que garantia é a forma garante. A primeira já criou raízes. A segunda não.» Sendo assim, é de facto melhor empregar garantia (que na nossa época está totalmente integrada no vocabulário) do que garante.

Quanto à segunda questão, não está incorreta a omissão do artigo definido, a qual se admite depois do verbo ser. Por exemplo, em «a inovação é fruto da critividade» também não se usa artigo, e não se vislumbra qualquer agramaticalidade.

Pergunta:

No vilancete camoniano Descalça vai para a fonte, qual é a função sintática desempenhada por «de prata» e «d´ouro» nos versos «o testo nas mãos de prata» e «cabelos d´ouro o trançado»? Estou em dúvida entre complemento do nome e modificador restritivo. Qual a vossa opinião?

Obrigada.

Resposta:

Na perspetiva do Dicionário Terminológico, trata-se de modificadores restritivos do nome que são realizados por grupos preposicionais equivalentes a grupos adjetivais («muito brancas ou delicadas», «loiros»).

A Gramática do Português (2013), da Fundação Calouste Gulbenkian, não se afasta muito desta análise quando identifica (pp. 1066-1070) um tipo de sintagmas preposicionais reduzidos (isto é, sem artigo) a que chama «sintagmas preposicionais classificadores». Entre estes modificadores, contam-se os que se referem a matéria-rima («vestido de seda» e «lençol de algodão», idem, p. 1068) e que correspondem aos complementos circunstanciais de matéria da terminologia tradicional. No poema, é de salientar a dimensão metafórica destes modificadores, a qual lhes permite referirem matérias-primas (prata, ouro) suscetíveis de serem usadas na estatuária, operando-se a transfiguração da jovem retratada.

Pergunta:

Na frase «o céu está nublado/estrelado», os adjetivos são qualificativos, ou relacionais?

Obrigada.

Resposta:

São qualificativos os adjetivos apresentados, tendo em conta o Dicionário Terminológico.

Com efeito, como é típico dos adjetivos qualificativos, nublado pode ser usado em construções de grau («céu muito nublado»), e estrelado já contém em si uma noção de alto grau («repleto de estrelas»). Acresce que ambos os adjetivos são resultado da recategorização de particípios passados em adjetivos (são particípios adjetivais, conforme a classificação da Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian (pág. 1485). Este aspeto é importante para a identificação da subclasse de nublado e estrelado, como se assinala na gramática escolar Domínios – Gramática da Língua Portuguesa – 3.º ciclo e ensino secundário (Lisboa, Plátano Editora, 2011, p. 133), de Zacarias Santos Nascimento e Maria do Céu Lopes (sublinhado meu):

«A posição dos adjetivos qualificativos na frase é, habitualmente, pós-nominal [...]. Há, no entanto, adjetivos que podem aparecer à esquerda do nome: "Uma bela estátua!" [...] Esta é uma propriedade que distingue os adjetivos qualificativos dos adjetivos relacionais. Outros traços distintivos do adjetivo qualificativo[:] 1. Expressa propriedades não definidoras: A minha cadela é amarela [amarela não define a espécie a que pertence cadela]; 2. Pode apresentar prefixos negativos: impróprio, intolerante, descontínuo; 3. Pode provir de um particípio verbal: ou de um particípio passado – amado, constipado; ou de um particípio presente de verbos latinos – sorridente, reluzente; 4. É, em geral, graduável, podendo ter antónimos: alto/altíssimo; bom/mau

Pergunta:

Qual a origem do sobrenome (apelido – nome de família) Tigre? É portuguesa? Sabem em quais regiões do Brasil e Portugal ele é mais comum? E quando surgiram os primeiros registros de famílias de sobrenome Tigre em língua portuguesa?

Resposta:

Nas fontes de que dispomos, relativas a nomes próprios, não encontramos praticamente registos de Tigre como nome próprio. Apenas no Tratado das Alcunhas Alentejanas (Lisboa, Edições Colibri, 2003) se consigna Tigre como alcunha (apelido no Brasil) alusiva ao comportamento de alguém tido como pessoa de mau feitio. É natural que a alcunha tenha passado a apelido (no Brasil, sobrenome), mas a obra em referência não confirma essa hipótese nem dá elementos sobre a datação e a distribuição geográfica deste nome próprio.