Bárbara Nadais Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Bárbara Nadais Gama
Bárbara Nadais Gama
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Licenciada em Ensino de Português Língua Estrangeira, mestre em Português Língua Segunda/Língua Estrangeira pela Universidade do Porto e doutoranda em Didática de Línguas. Foi professora de Português no curso de Direito da Universidade Nacional Timor Lorosae- UNTL, no ano letivo de 2011-2012.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Surgiu-me uma dúvida quanto aos recursos estilísticos usados n´Os Lusíadas. No canto IV, na estância 30: «Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia / Dos que a tanto desejam, sendo alheia.»

Há alguma metáfora? Se sim, pode explicar porquê?

Obrigado.

Resposta:

Sim, a estrutura frásica que o consulente apresenta insere-se no canto IV d´Os Lusíadas, de Luís de Camões, em que a figura usada é a metáfora. Nas metáforas há alteração do sentido da(s) palavra(s), que adquire(m) uma significação diferente através de uma comparação subentendida de realidades distintas. Normalmente, o uso da metáfora serve para enriquecer e dar maior expressividade às situações descritas no texto.

Reproduz-se adiante a estrofe 30 do canto IV, a qual faz parte do relato sobre a batalha de Aljubarrota, travada em 1385 por castelhanos e portugueses:

«Começa-se a travar a incerta guerra:

De ambas partes se move a primeira ala;

Uns leva a defensão da própria terra,

Outros as esperanças de ganhá-la.

Logo o grande Pereira, em quem se encerra

Todo o valor, primeiro se assinala:

Derriba e encontra e a terra enfim semeia,

Dos que a tanto desejam, sendo alheia.» 

Os versos que aqui se apresentam são marcados pelo recurso à metáfora, pois o que se pretende salientar é o momento em que os castelhanos, que invadiram Portugal, acabam por morrer em grande número, caindo sobre a terra como se esta estivesse a ser semeada.

Pergunta:

A  minha pergunta é sobre o verso do seguinte poema de João Cabral de Melo Neto:

«É a conta menor que tiraste em vida.»

Que quer dizer «tirar uma conta»? «Deitar fora uma conta»? «Retirar uma conta»? Como entender esse verso?

Saudações.

Resposta:

Em certos falares do português do Brasil, «tirar conta» pode significar «fazer cálculos aritméticos».1

O trecho que apresenta da obra Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, retrata o momento em que Severino assiste ao enterro de um trabalhador e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério: «Essa cova em que estás, com palmos de medida, é a conta menor que tiraste em vida» – os amigos refletem sobre a maneira como os patrões tratam os seus empregados, explorando-lhes a força de trabalho, pagando-lhes uma ninharia, de onde se depreende que toda a vida este trabalhador tirou muito pouco, tão pouco, que mal dá para a cova em que é enterrado.

1 Pode-se deduzir o significado desta expressão do contexto que se segue, extraído de uma página brasileira: «Nós somos índios Caxinauás do Jordão e queremos aprender a língua de português, ler, escrever e tirar conta para não ser roubado pelo cariu.» Note-se, contudo, que o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (s.v. conta 2004), obra elaborada no Brasil, apenas atesta a expressão «fazer constas», com  a seguinte abonação: «A invenção da calculadora facilitou a tarefa de fazer contas.»

Pergunta:

O que é uma mudança linguística?

Resposta:

O Dicionário de Termos Linguísticos (Lisboa, Edições Cosmos), organizado por Maria Francisca Xavier e Maria Helena Mira Mateus, define mudança linguística assim:

«Qualquer modificação sofrida pela estrutura de uma língua (a nível fonético, fonológico, morfológico, sintáctico ou semântico) ao longo do tempo.»

Sobre o mesmo termo, o Dicionário Terminológico acrescenta: «Fenómeno que resulta da projecção da língua de uma comunidade na história dessa comunidade e das suas comunidades descendentes. Fruto da mudança linguística, a língua do passado é diferente da língua do presente. A disciplina que estuda essa diferença é a linguística histórica. A mudança linguística observa-se a todos os níveis gramaticais e resulta da combinação de diferentes factores de mudança: os factores internos, que são constituídos pela própria estrutura da língua, e os factores externos, de natureza sobretudo geográfica e social. É através da variação social que a mudança linguística se propaga numa comunidade.»1

Manteve-se a ortografia original nas duas definições apresentadas.

Pergunta:

É «viajar para São Paulo», ou é «viajar a São Paulo»?

Resposta:

No caso do verbo viajar, é preferível utilizar a preposição para ou até – «vou viajar para São Paulo»/«vou viajar até São Paulo» –, sobretudo se pretende dizer que vai viajar para um lugar distante com a ideia de permanecer algum tempo. Se, por outro lado, está a referir-se a um período curto, poderá optar por empregar o verbo ir («vou a São Paulo»), com o sentido de exprimir curta duração de uma ação temporal. 

Dicionário Sintático de Verbos Portugueses (Coimbra, Almedina, 1995), de Winfried Busse, apresenta as seguintes estruturas/propriedades sintáticas do verbo viajar: «Viajou para a América. Viajou por toda a Europa. Viajar de carro/de comboio/de barco. O serviço está cada vez pior, já não dá gozo viajar de avião. Ela viaja em primeira classe.»

Pergunta:

Gostaria de saber como se pronuncia Saragoça, há uma regra? É razão? É "Saragôça", ou "Saragóça"?

Resposta:

No Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), Rebelo Gonçalves apresenta a palavra com a indicação de "ô" fechado. O mesmo acontece quando pesquisamos o nome comum saragoça em dicionários: «/ô/ s. f. (sXVII cf. SorPoes) 1 têxt[eis] tecido grosso de lã escura 2 p[or] met[onímia] qualquer roupa feita com esse tecido; etim top[ónimo] Saragoça (Espanha), capital do antigo reino de Aragão, de onde se importava esse tipo de fazenda» (Dicionário Eletrônico Houaiss).

Sobre o mesmo nome, a rima na tradição popular (Poesia Popular dos Cortelhões e dos Pingalheiros, de Francisco Henriques e João Carlos Caninas) sugere que pronunciemos a palavra com "ô" fechado:

«Era uma vez uma velha

Mais velha que a Saragoça

Queria dançar o baião

Pensava que era moça.

(...)

Era uma vez uma velha

Mais velha que a Saragoça

Falaram-lhe em casamento

E a velha tornou moça.»