Chega às livrarias o Michaelis, novo
grande dicionário da língua portuguesa
Publicado originalmente em 1975, o Aurélio reinou ao longo de 22 anos como único dicionário moderno da língua portuguesa organizado por brasileiros e voltado para o Brasil. Incontestável pai-dos-burros, ele vendeu 13 milhões de exemplares de duas edições. Agora chegou o momento de enfrentar a concorrência. Lançado na semana passada em São Paulo, um novo dicionário aparece para brigar pelo trono, o Michaelis. Ele tem 201.174 verbetes, cerca de 76.000 a mais que o velho Aurélio, cuja última atualização ocorreu em 1986. Dá uma atenção toda especial às ciências e técnicas surgidas nas últimas décadas, sobretudo a informática. E pretende refletir uma realidade lingüística mais "urbana", mais uniforme, menos marcada por regionalismos, arcaísmos e pelas palavras pitorescas que o Aurélio sempre teve prazer em registrar, recorrendo freqüentemente a exemplos tirados de escritores consagrados.
Assim como o Aurélio foi batizado para homenagear seu organizador, o lingüista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o Michaelis ganhou seu nome das irmãs Henriette e Carolina Michaelis de Vasconcelos, esta uma lexicógrafa de origem alemã que viveu em Portugal no final do século passado. Nas primeiras décadas do século XX, Michaelis deixou de designar uma autoria para se transformar numa marca em Portugal. No Brasil, a griffe pertence à Editora Melhoramentos há quarenta anos, numa linha que inclui dezoito dicionários bilíngües e outros produtos, como dicionários ilustrados e em CD-ROM. O Michaelis, aliás, sai também em CD-ROM, mercado que cresce no Brasil, embora ainda não chegue perto do dos dicionários em forma de livro.
O Michaelis — Moderno Dicionário da Língua Portuguesa começou a ser escrito dez anos atrás. Ao todo, 84 pessoas chegaram a estar envolvidas no projeto, entre lexicógrafos, etimologistas, revisores e colaboradores externos de diversas áreas do conhecimento. Segundo Walter Weiszflog, editor do Michaelis, o critério para a inclusão de um termo no novo dicionário foi seu emprego comprovado em pelo menos três veículos idôneos de mídia impressa — jornais e revistas de boa circulação, livros, publicações acadêmicas e técnicas etc. Por isso palavras como "deletar" e "inicializar", repetidas por qualquer pessoa que já tenha estado diante de um computador e que normalmente causam convulsões nos gramáticos, por ser empréstimos desnecessários do inglês (afinal, os equivalentes em português são bem simples: "apagar" e "iniciar"), estão rigorosamente listadas no dicionário. Outra novidade é que todos os verbetes têm a indicação da divisão silábica, o que facilita a vida dos estudantes.
Apesar de seus mais de 200.000 verbetes, o Michaelis continua sendo um dicionário médio para os padrões internacionais. Nos Estados Unidos, uma obra como o Webster reúne mais de 450.000 palavras e expressões. Como o português tem menos palavras que o inglês, um dicionário brasileiro que fosse completo teria, calcula-se, cerca de 300.000 verbetes. Semelhantes no modelo — um dicionário em apenas um volume, prático, manuseável e acessível ao bolso do brasileiro —, há boas diferenças de estilo entre o Aurélio e o Michaelis. Alagoano, o professor Aurélio sempre foi bastante cuidadoso ao registrar os regionalismos. Ele tinha correspondentes espalhados pelo Brasil que se encarregavam de mantê-lo informado a respeito de expressões e neologismos. Outra característica que salta aos olhos é o método de exemplificação: no Aurélio, sempre que possível, trechos de escritores clássicos são transcritos para clarificar e confirmar a acepção de um termo.
No Michaelis, os regionalismos estão presentes, mas não chamam tanto a atenção. Quanto aos exemplos, saem menos da literatura do que das expressões do dia-a-dia. "Acreditamos que os fluxos de migração no Brasil, assim como a grande influência da mídia, diminuíram o impacto dos regionalismos", diz Weiszflog. "Além disso, o universo de publicações aumentou tanto nos últimos anos que a grande literatura não pode mais ser considerada a fonte privilegiada de novas palavras." Outra característica do Michaelis é não registrar acepções pejorativas de determinadas palavras (veja quadro). Essa decisão pode ser politicamente correta, mas é empobrecedora do ponto vista lingüístico.
Até o ano 2000, o brasileiro deve ser brindado com outros dois dicionários ambiciosos e bem diferentes, tanto do Aurélio como do Michaelis. O primeiro, cujo lançamento está programado para o fim de 1999, ainda sem nome definitivo, poderá ter o título de Dicionário Ática-Borba da Língua Portuguesa. Seu organizador é Francisco da Silva Borba, lexicógrafo da Universidade Estadual Paulista, em Araraquara, que comanda uma equipe de oito pessoas. Será o primeiro dicionário brasileiro organizado segundo o modelo inglês, que trabalha com o conceito de "ocorrência". Nesse modelo, o dicionário se preocupa em esmiuçar os vários sentidos de uma mesma palavra a partir das diferentes situações em que ela aparece. É um dicionário necessariamente rico em exemplos, que são a base para a explicação das diversas acepções de um termo. Pelo modelo francês, seguido pelos dicionários existentes no Brasil, a obra de Francisco Borba pareceria pequena, por conter apenas 65.000 verbetes. Mas, se fosse diagramada exatamente como o Aurélio, teria 700 páginas a mais do que ele.
Portugal — O outro grande projeto em andamento vem do Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia. Ele está sendo desenvolvido há mais de dez anos. Depois de uma interrupção, os trabalhos foram retomados no ano passado e devem ser concluídos no ano 2000. Contando com o patrocínio da Petrobrás, da Embratel e da Telerj no total de 6 milhões de dólares, o projeto foi considerado de alta relevância pelo Ministério da Cultura e está incluído nas celebrações dos 500 anos do Descobrimento. O grande diferencial desse dicionário é o propósito de registrar as modificações da língua portuguesa de 1580 — ano da morte de Luís de Camões — até hoje. Pela primeira vez um dicionário vai fazer a datação das palavras, tanto do início do uso quanto das acepções. As etimologias serão caprichadíssimas, bem como as informações gramaticais. "Ao contrário dos outros dicionários existentes no Brasil, o nosso também trará as palavras e acepções utilizadas em Portugal e nos países africanos e asiáticos que falam o português", conta Mauro de Salles Villar, sócio e diretor técnico do instituto.
Todos esses dicionários podem parecer um exagero, mas não são. A maioria dos países europeus tem sete ou oito grandes dicionários de uso corrente, que dialogam uns com os outros e cobrem diferentes lacunas. Numa língua que está em constante mudança, recebendo novas palavras a cada dia, os dicionários só podem ser "obras abertas", em constante alteração. "Passamos tantos anos tendo apenas o Aurélio porque os estudos lingüísticos no Brasil evoluíram devagar demais", afirma Mauro Villar. "O surgimento de novos dicionários não significa que os antigos perderam validade. Pelo contrário. A tendência é que todos passem a crescer mais rapidamente e de maneira complementar."
*Artigo publicado na revista "Veja" do dia 29 de Abril