Foi sepultado ontem (8/3/99), no Mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, o filólogo António Houaiss, que coordenou, no Brasil, as negociações que geraram a polémica proposta de acordo de unificação ortográfica da língua portuguesa. Houaiss morreu aos 83 anos, vítima de problemas respiratórios que o obrigaram a sucessivos internamentos - o último dos quais, de 69 dias - e antes de ver ratificado, pelo Parlamento brasileiro, o acordo em que se empenhou com entusiasmo.
Outro projecto que o filólogo brasileiro deixou inacabado é o "Dicionário de Língua Portuguesa no Âmbito Lusofónico", cuja conclusão a editora Objetiva promete, mesmo depois da morte do seu coordenador, para o ano 2000, como parte das comemorações pelo quinto centenário do descobrimento do Brasil. Diziam as más línguas que o grande empenho de António Houaiss na unificação ortográfica entre os países de língua portuguesa se devia aos interesses editoriais gerados pelo "Dicionário...", projecto ambicioso, nascido em 1986, que envolve investimentos de 6 milhões de reais*** e o trabalho de 30 lexicógrafos.
Nascido em Copacabana em 1915, de pai libanês e mãe brasileira, Houaiss era filho de uma família de classe média-baixa: "Nasci de uma família relativamente pobre e, para mim, era fundamental ver a razão de ser disso", dizia. Na sua busca das causas da pobreza, acabou por se tornar um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, depois de extinta a ditadura militar, de que o filólogo foi uma das vítimas.
Em 1964, ano em que se instaurou a ditadura, António Houaiss foi compulsoriamente aposentado do serviço diplomático, em que ingressara na década de 40, sob a acusação de ser comunista. Sob a mesma acusação, Houaiss viu negada, pelo governo norte-americano, a indicação para um cargo diplomático em Washington.
A política foi actividade permanente na vida de António Houaiss - assessor directo do presidente Juscelino Kubicheck, na década de 50, e ministro da Cultura de Itamar Franco, em 1992. Ao assumir o cargo, disse: "Entro para o Governo com uma certa ingenuidade, no sentido de que pode ser que eu tropece daqui a pouco, porque não quero, de modo nenhum, criar uma política que me sustente na política". Ficou um ano no cargo. Além disso, candidatou-se a senador e a vice-governador do Rio de Janeiro. Perdeu ambas as eleições.
Foi quando, à revelia, se viu livre das embaixadas, que António Houaiss se dedicou àquela que talvez tenha sido a sua mais heróica tarefa: a tradução de "Ulisses", de James Joyce [ed. portuguesa na Difel]. Com uma humildade que nem sempre terá sido sua marca pessoal, o filólogo brasileiro respondia às muitas críticas que recebeu pela tradução da obra dizendo acreditar que "o texto poderá ser melhorado por um futuro tradutor, porque ´Ulisses` é dessas obras que, fatalmente, terão duas ou três traduções em português". No Brasil, porém, ninguém mais se atreveu a tamanha empreitada. [Em Portugal está também disponível a tradução de João Palma-Ferreira, na Livros do Brasil]
Magro e miúdo, ninguém diria, mas, à filologia e à política, António Houaiss aliava duas outras grandes paixões: a gastronomia e a cerveja, sobre as quais escreveu, respectivamente, "A Magia da Cozinha Brasileira" e "A Cerveja e seus Mistérios". "Há certas coisas que eu creio que todos os homens deviam fazer. Todos os homens devem se interessar por sexo, e vejo que se interessam, mas o sexo é tão importante na vida quanto comer. Os homens que não se interessam por comer, ou que desprezam a cozinha, são machistas pensando que são mais machos", disse o gastrónomo António Houaiss, que parece ter entrado na biblioteca pela porta da cozinha: "Cozinha é, sobretudo, cultural, e devo a ela a minha primeira abertura cultural, que cultivei pelo resto da vida".
Ocupava a cadeira número 17 da Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 1971. O ingresso do filólogo na "Casa de Machado de Assis" foi objecto de um bem humorado manifesto de protesto, redigido por amigos como Millôr Fernandes e Ziraldo, que não o conseguiam imaginar envergando o "fardão" da Academia. Mas o "fardão" tão cheio de pompa parece ter servido como uma luva em António Houaiss, tanto que, em 1995, dirigiu os seus dotes políticos para o âmbito restrito dos "imortais" e elegeu-se presidente da Academia Brasileira de Letras, cargo de que se desligou, em grande medida, por causa dos problemas de saúde que, desde então, já o agastavam.
*** 590 mil contos (quase 3 milhões de euros).
* In Público de 9/3/1999.