O Grande Livro das Lengalengas, da autoria de José Viale Moutinho (texto) e Fedra Santos (ilustrações), é uma antologia de 101 lengalengas populares em álbum ilustrado e dirigido às crianças. Recensão crítica de Ana Cristina Leonardo, publicada no caderno “Actual” do semanário “Expresso” de 16 de Fevereiro de 208, com a devida vénia.
Sentidos absurdos, encadeamentos fonéticos, rimas de embalar, repetições que se prolongam ad infinitum, tudo isto está nas lengalengas, forma de linguagem popular que se ajusta como uma luva ao universo infantil.
Quem tenha por hábito observar brincadeiras de crianças, já com certeza se deu conta da espontaneidade com que elas (re)inventam cantilenas (introduzindo-lhes mesmo ícones modernos), sem qualquer consideração pelo sentido, apenas se preocupando com a fonética e o ritmo das frases, por vezes cantadas e acompanhadas de movimentos do corpo ou das mãos. Sendo esta prática comum, talvez ela indicie uma apetência primordial pela música/poesia enquanto prática encantatória e lúdica, exactamente o mesmo que parece estar por detrás das lengalengas populares. E será nesse entendimento que a presente antologia chama a atenção para a «sua utilidade como exercício de linguagem no ensino do Português».
De variadíssimos tipos — curtas, longas, pedagógicas ou «nonsense»... — as lengalengas são, de facto, um meio privilegiado para criar apetência pela língua, já que, na sua liberdade expressiva, vão em socorro da criatividade e imaginação dos mais novos, permitindo até a criação de palavras (ou a descodificação de outras, antigas), como é por vezes o caso dos trava-línguas, que não hesitam em usar vocábulos inexistentes no fito de dificultar a leitura e pronunciação: «Era uma vez um velho/ bodelho sericamontelho/ casado com a velha bodelha/ sericamontelha, que foi à caça/ bodaça sericamontaça/ e apanhou um coelho/ bodelho sericamontelho (...)».
Muitos outros aspectos permitem concluir serem as lengalengas aliciantes para os mais jovens, mas talvez seja o recurso à repetição o aspecto que mais se evidencia, sabido como até determinada idade as crianças podem ser obsessivas na sua paixão pelo mesmo. Uma lengalenga de construção interrogativa levará essa possibilidade à exaustão (nossa, eventualmente, nunca delas): «Era uma vez/ um gato maltês,/ tocava piano/ falava francês./ A dona da casa/ chamava-se Inês/ e o número da porta/ era o trinta e três/ Queres que te conte?/ Um./ Dois./ Três./ Queres que te conte outra vez?»
Para resumir: O Grande Livro das Lengalengas é um trabalho de mérito que divertirá com certeza as crianças, e também pelas ilustrações. A mim divertiu-me. Até porque inclui a minha lengalenga preferida: «Era uma velha/ que tinha um gato,/ Debaixo da cama o tinha./ O gato miava/ e a velha dizia:/ Estou só, estou só,/ estou só de uma banda só!(...)». E acaba com aquele conhecido final: «E depois?/ E depois/ Morreram as vacas/ Ficaram os bois.»
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