Artigo do jornalista João Miguel Tavares publicado no "Diário de Notícias" de 1 de Julho de 2008, sobre a colectânea Novos TalentosFnac, editada em Portugal. 13 das 17 músicas trazem o título em inglês.
Eu gostava de ser como Vasco Graça Moura e ter suficiente sabedoria para alinhavar dezenas de textos indignados sobre o Acordo Ortográfico. Só que o destino das consoantes mudas não me comove e a traição à raiz das palavras não provoca em mim o mais pequeno sobressalto. Mas sou sensível à questão da língua neste ponto: parece-me evidente que a escola tem cada vez mais dificuldades em meter na cabeça das criancinhas o gosto pelo português. Entre a contagem dos decassílabos d'Os Lusíadas e a promoção de «conhecimentos metalinguísticos», por algum lado o prazer se esvai. Prova disto: a recém-lançada colectânea de música Novos Talentos Fnac, que, na sua candura, me inquieta mais do que passar a escrever coletânea em vez de colectânea.
Não me entendam mal: a ideia da compilação — permitir a gente nova gravar um tema em boas condições técnicas e divulgar o seu nome num disco patrocinado pela Fnac — é óptima, o preço uma pechincha (quatro euros por um duplo álbum) e os lucros até revertem para a AMI. Tudo ali é bem tratado, dos músicos aos consumidores. Tudo, menos a língua portuguesa. Porque, neste campo, acontece com a compilação de 2008 o mesmo que já acontecia com a de 2007, em que 13 das 17 músicas (76 por cento!) eram inglesas no título. Abertura do disco 1: os lisboetas The Guys from the Caravan, com o tema Just Kiss Me. Abertura do disco 2: Circles, dos The Pragmatic. E a coisa continua por aí fora, com a suprema ironia de haver pelo meio uns The Portugals, interpretando Give It to Me.
Eu sou filho, tanto como esses rapazes, de uma cultura imensamente marcada pela língua inglesa — e gosto muito. Mas é suposto haver uma certa distância entre aquilo que nos entra pelos ouvidos e aquilo que nos sai pela boca. É certo que há casos de portugueses a tocar com americanos, formando bandas transatlânticas, mas essas são excepções: o resto é mesmo pessoal da Brandoa a fingir que é de Bristol. E isso é bem mais grave, e mais sintomático da falência do português, do que o abate das consoantes mudas. Porque, das duas uma: ou se reduz uma canção à sua melodia, o que já por si diz muito da decadência das palavras, ou então não se percebe como é que um artista português, para se expressar publicamente, deixa de fora a língua que usa na rua, nas conversas de amigos, nas declarações de amor.
Não se trata aqui de "proteger" o português ou de resistir a invasões culturais, que são argumentos do tempo da Outra Senhora. Trata-se, isso sim, de acreditar na arte como uma extensão da vida — e de ver com espanto que a riqueza da língua e as suas potencialidades musicais não motivam minimamente jovens criadores, num meio tão popular quanto o das canções. Pode ser uma fase, é certo, mas se é uma fase já dura há demasiado tempo. Por mim, podem perfeitamente mudar a forma como se escreve em português — convinha é que ele continuasse a ser escrito.
in "Diário de Notícias", 1 de Julho de 2008