«Palavra dada, escritura assinada», «a resposta branda, a ira quebranta» são dois exemplos de ditados populares que revelam a força dos palavras. A sabedoria popular consagra também que «palavras leva-as o vento». Como as palavras são muitas, há-as para todos os gostos as que se perdem e as que têm, ou são ditas como se tivessem, efeitos na acção. Estes podem ser visíveis na acção de outrem, mas também podem delimitar quadros de pensamento. Um ministro francês, Nicolas Sarkozy, falou em escumalha e a violência cresceu em França. «Mais atenção às palavras», pediu o filósofo francês André Gluksmann.
O leitor [do "Diário de Notícias"] Anildo Costa também esteve atento e enviou [ao autor, na qualidade de provedor dos leitores do "Diário de Notícias de 21 de Novembro de 2005] uma mensagem que alerta para o uso da expressão «imigrantes de segunda geração»:
«(...) Em relação aos acontecimentos recentes em França, a maioria dos jornalistas portugueses utiliza a designação "imigrantes de primeira ou segunda geração". Ora, uma visita ao dicionário ensina-nos que só é imigrante quem vai a um país estrangeiro para aí viver. Neste caso, os que cá nasceram (ou os que nasceram em França) não são imigrantes. E acrescentar segunda geração não muda nada. Do ponto de vista linguístico a designação adoptada está errada. Acresce o facto de que, no caso da França, os residentes dos bairros são na maioria franceses de nacionalidade, visto que em França vigora o direito do solo, o que não é o caso em Portugal. O tratamento dado ao caso em Portugal, pelos media, é diferente da percepção que se tem em França. Numa mesma reportagem na TV, enquanto o jornalista português se referia a bairros habitados por imigrantes, o primeiro-ministro falava de francesas e franceses a viver em condições degradantes. A designação não é neutra. Ao utilizar a designação imigrante (mesmo que de primeira ou segunda geração), o jornalista identifica de maneira clara o 'outro' e induz no leitor (ou espectador) uma ideia errada para não dizer tendenciosa e discriminatória. (...) Penso que os jornalistas deveriam ser neutros e rigorosos na transmissão da informação e, com isso, seria possível ajudar a mudar a atitude da sociedade portuguesa em relação à tolerância.»
O jornalista João Miguel Tavares esteve em França recentemente a cobrir os acontecimentos para o "Diário de Notícias". Pedi-lhe, por isso, uma reacção. Sublinhe-se que o leitor não questionava o trabalho do jornalista, antes questionava o que, segundo ele, seria uma prática da «maioria dos jornalistas». Este prontamente me fez chegar um texto, em que, entre outras coisas, escreveu:
«Do ponto de vista formal, o leitor tem toda a razão. Mas deixe-me citar-lhe duas frases da primeira reportagem que enviei de França (...) "Embora nascido em França, Mohamed garante que 'só é francês no bilhete de identidade'. No coração, sou marroquino.' No mesmo texto, um pouco mais à frente: "Os nossos papéis são franceses, mas a cara não é. Há emprego para quem se chama Richard, mas para nós não."»
Penso que estes dois exemplos são suficientemente esclarecedores. É verdade que numa perspectiva puramente formal a expressão "imigrante de segunda geração" é, em si mesma, uma contradição. "Filho de imigrantes" ou "francês de ascendência africana" seriam alternativas possíveis, mas há duas questões que têm de ser levadas em conta. Uma, mais prosaica, tem a ver com a qualidade dos textos e com a necessidade encontrar sinónimos - por vezes menos rigorosos - para evitar a eterna repetição das mesmas expressões. A outra, mais substancial, tem a ver com a necessidade de tornar claro para o leitor aquilo que está em causa.
No caso dos presentes conflitos (que, aliás, tiveram enormes trabalhos de contextualização nos jornais de referência), seria impensável construir textos referindo os motins como sendo protagonizados por "franceses", sem mais. Seria levar o politicamente correcto a um tal extremo que os leitores não chegavam sequer a ficar informados sobre o que estava a acontecer.
Porque, de facto, o que aqui está em causa é um problema de exclusão e de discriminação, e são aqueles "franceses" os primeiros a dizer que não o são ou, pelo menos, a dizer que não são tratados como tal. Infelizmente, há casos em que o jornalista é obrigado a optar entre o rigor formal - e até legal, porque aqueles jovens são legalmente franceses - e a clareza da informação.
«Imigrante de segunda geração» pode não fazer sentido num dicionário, mas é uma expressão que esclarece bem aquilo que está em causa. E, em última análise, isso é o mais importante no jornalismo.
Será que esta solução é boa para a compreensão dos problemas? A compreensão imediata é certamente beneficiada, mas o enquadramento social fica prejudicado. Ou seja, o jornalismo tem uma dimensão política que sobreleva a mera justeza dos juízos jornalísticos e que leva a que, em certas situações, seja preciso ver dimensões mais gerais.
O prof. Fernando Luís Machado, do ISCTE, investigador destes problemas, considera que alguns imigrantes, ou os seus descendentes, podem viver sentimentos difusos, mesmo contraditórios, sobre a sua identidade e pertença. As terminologias que acentuem tal conflitualidade não levam ao apaziguamento e à inclusão. Por outro lado, essa acentuação pode provocar a exclusão social, o fechamento ou reforçar mesmo a confusão no sentimento de pertença. Por isso, melhor seria usar expressões como filhos ou netos de emigrantes, descendentes de emigrantes ou, mesmo, cidadãos franceses descendentes de emigrantes. A categoria «imigrantes de segunda geração» tende a considerar, aos olhos dos próprios, como aos olhos da sociedade, a imigração como um dado social hereditário.
Texto publicado no "Diário de Noticias de 21 de Novembro de 2005, na coluna Provedor dos Leitores