Fazendo uma reportagem sobre o Festival de Cannes [que, em 2016, decorreu de 11 a 21 de maio], Judite de Sousa informou [no Jornal das 8, da TVI] que «o público colocou os olhos na passadeira». Fiquei preocupada. E se alguém tropeçasse?
Os romanos saudavam – «Ave, César, os que vão morrer te saúdam» –, mas o verbo pôr parece ter morrido de uma morte prematura e inesperada. Não chegou a despedir-se nem a saudar ninguém. Num curto espaço de tempo, os falantes do português decidiram que «quem põe são as galinhas», tendo eu já ouvido dois eminentes responsáveis pela cultura portuguesa defender que «a postura é das galinhas». Lamento profundamente que um verbo de tão grande força na tradição latina tenha, por ignorância, sido relegado para as galinhas.
Subitamente, os alunos de português deixam de «pôr uma frase na negativa», «pôr uma frase no discurso indireto», para passarem a «colocar uma frase na negativa», a «colocar uma frase no discurso indireto», mas mais estranho ainda parece ser uma pessoa «colocar as mãos nos bolsos», pelo caráter físico que isso representa. Parece que se terá de «pegar nas mãos e colocá-las nos bolsos». Um importante advogado falou ontem na televisão sobre o que se estava a «colocar em causa». Já não se pode pôr nada em causa? E deverá «colocar-se a mesa para o jantar»? Será que «o Sol também se coloca a ocidente»? E «uma pessoa também se colocará a andar» quando decide ir-se embora? E onde ficarão as terras «para além do Sol colocado»?
Criou-se a ideia de que colocar é mais erudito do que pôr. Mas essa ideia é errónea. O latim pono, ponere deu origem ao nosso verbo pôr, que parece estar a ser rápida e impiedosamente substituído pelo verbo colocar. De significação semântica muito mais física e material, o verbo colocar não pode substituir sempre o verbo pôr. O público pôs de facto os olhos na passadeira, mas não os colocou lá. Do latim positura1, a palavra deu as palavras portuguesas posição e postura, sendo a postura a posição do corpo, do rosto, a posição em sociedade, a posição perante o mundo.
Também sem morte anunciada, os portugueses deixaram de «fazer perguntas» e passaram a «colocar questões» e a «colocar muita coisa em causa». As perguntas já não «se fazem» em português? Já não se pode «pôr nada em causa»? O português previa também que, perante um problema que se sabia estar presente, ser real, «se levantava uma questão». A ideia era perfeita, pois o problema já lá estava, e ao falarmos nele estaríamos de facto a levantar uma questão, a descobri-la. Não estaríamos a colocá-la. O sentido é inverso.
Ave, Caesar, morituri te salutant. «Ave, César, os que vão morrer te saúdam!» E os que parece já terem morrido também!
Que tal se passarmos a fazer perguntas e a levantar questões?
1 A forma é oriunda do latim positura, substantivo formado do tema do supino do verbo pono, ponere. Positura em latim significa, «arranjo», «disposição» (positura uerborum = disposição das palavras»). Encontra-se postura em 1391 com o significado de «determinação legal, regulamento»: «e uos auedes uossa postura que nem hum non possa hy poeer nem meter vinhos.»