A (errada) repetição do artigo definido na citação de jornais com eles já incluídos nos respetivos títulos é o tema desta crónica publicada na coluna semanal do autor, no jornal i, de 12 de setembro de 2013.
Nada parece ser simples na língua portuguesa. Nem mesmo a utilização dos artigos. É o que se conclui da leitura dos jornais. Em Agosto, antes de Portugal arder, foi noticiado que o milionário John W. Henry seria o novo dono «do ‘The Boston Globe’», jornal de grande prestígio adquirido há duas décadas pela companhia proprietária «do ‘The New York Times’». Acrescentavam as notícias que o jornal de Boston não fora o único a ser vendido por um preço considerado baixo, e que «o ‘The Philadelphia Inquirer’» já tivera a mesma sorte. Ora, assim como não se diz «o ‘O Globo’» ou «a ‘A Capital’», não se deve dizer (ou escrever) «o ‘The New York Times’» ou «o ‘The Boston Globe’». A razão é a mesma: há artigos a mais. Escolha-se o "The", que faz parte do título, e acomode-se a nossa língua à inevitável presença estrangeira.
No caso das línguas latinas, o problema quase não se põe: ninguém em plena posse das suas faculdades mentais diria ou escreveria «o ‘Le Monde’ publica...», «o ‘El País’ garante...», «o ‘Il Corriere della Sera’ critica...» ou «o ‘La Repubblica’ assevera». Diz-se (e escreve-se) «’Le Monde’ publica...», «‘El País’ garante», «‘Il Corriere della Sera’ critica...» e «‘La Repubblica‘ assevera». Já vejo um sorriso nos lábios de certos leitores informados e atentos, que se interrogam: e no caso do livro sagrado do Islão, diz-se Corão ou Alcorão? Sabem tais leitores que o “al” inicial é um artigo, mas encontram frequentemente a forma «o Alcorão». Que não haja dúvidas: trata-se de «o Corão».
N. E. – Convém esclarecer que Alcorão é a forma tradicional portuguesa, semelhante às tradicionais castelhana Alcorán – embora o dicionário da Real Academia Española (RAE) remeta esta forma para Corán – e catalã Alcorà, visto que, na Idade Média, em todas estas línguas se adotaram muitos empréstimos do árabe (arabismos) com a particularidade de a sua maioria aglutinar o elemento al-, com origem no artigo definido árabe. Note-se que em português, como em castelhano ou catalão, nunca teria sentido empregar um arabismo começado por al- sem tal elemento aglutinado: por exemplo, em português, existe almofada, do árabe al-muhaddâ "coxim, travesseiro" (Dicionário Houaiss), e não *mofada"; em castelhano, regista-se alquiler (o mesmo que aluguer ou aluguel), do árabe hispânico alkirá o alkirí, por sua vez, do árabe clássico kirā´ (cf. RAE), e nunca *quiler; e o catalão, que tem menos arabismos e em que parece ser menos frequente a aglutinação de al-, tem, mesmo assim, alfàbrega, do árabe. al-ḥábaqa, «alfavaca» (na origem do português alfavaca), e não *fàbrega (há fàbrega, «fábrica», mas de significado e etimologia diferentes).
A variação entre Alcorão e Corão é relativamente recente na língua portuguesa, como explica em nota etimológica o Dicionário Houaiss (s.v. alcorão):
«[Á]r. al-qurā'n 'o que deve ser lido, a leitura (por excelência)'; em Corte Imperial (sXVI?), as var. alcarão e alcarom; a forma corão é moderna, de fonte francesa, us. sob o argumento de que, por ser o al- do étimo o art.def. ár., dizer o alcorão seria pleonástico; o fr. Coran é de 1657 e Domingos Vieira já registra corán em 1873 com nota de rejeitável; para a acp. 4, ocorre a var. alcorana; f.hist. sXIII alcoran, sXIV alcorã, sXV allcoram, 1520 alcarão, 1529 alcorões, 1570 alcorã.»
Acrescente-se que Corão ganhou certo uso, tornando-se aceitável, como atesta a sua dicionarização, muito embora a respetiva entrada remeta sempre para Alcorão. Por outras palavras, Alcorão nunca deixou de fazer parte das formas corretas da língua portuguesa.
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in jornal i, de 12 de setembro de 2013, com o título original "Artigos", na crónica semanal do autor, "Ponto do i". Respeitou-se a antiga ortografia, seguida pelo matutino português.