Acaba de ser publicado um dos ensaios mais importantes que entre nós já foram dedicados aos problemas do ensino da língua e da literatura portuguesa. Trata-se de A Literatura no Ensino Secundário /Outros Caminhos, de José Augusto Cardoso Bernardes (ASA, 2006, col. "Como abordar…").
Professor da Universidade de Coimbra e autor de obras sobre a literatura portuguesa do Renascimento em que avulta a sua tese de doutoramento, Sátira e Lirismo/Modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente, JACB já tinha esboçado uma sugestiva proposta sobre Ler e Ensinar Gil Vicente (ainda) Hoje em Revisões de Gil Vicente (Angelus Novus, 2003).
Agora, o autor traça com objectividade, serenidade e firmeza a evolução do ensino da literatura a partir da década de 1970 e de concepções que radicavam ainda no Romantismo e no nacionalismo identitário do século XIX até à situação descabelada que hoje se vive, entre os pólos do excesso e da expiação… E fá-lo com grande diplomacia, não vão as vestais universitárias dos ignominiosos programas que nos regem sentir-se excessivamente doloridas…
JACB observa como se degradaram o estatuto e a dignidade do professor de Português, que soía ser uma referência em cada escola em termos de língua e de cultura, reduzido à condição de técnico especializado e passando a sentir-se «implicitamente desobrigado de incorporar nas suas aulas a vertente cultural que antes acompanhava o ethos filológico».
Nota como a Linguística contribuiu para consumar «primeiro na investigação e na docência universitária e, logo depois, nos programas e nas práticas de docência um lento processo de desnobilitação do texto literário, amortecido na sua dimensão de legado e, nessa medida, tornado equivalente a qualquer outro».
Associa todos esses excessos ao modelo de formação científico-pedagógica da grande maioria dos professores de Português que estão no activo.
Verbera o arredamento ou a menorização de importância quanto aos autores anteriores ao século XIX e diz, mais adiante, que «diminuir a presença da Literatura no Ensino Secundário em nome do reforço de objectivos de natureza linguística é, em si mesmo, um terrível equívoco educativo».
Faz notar que, «com a entrada em vigor dos novíssimos programas de Português (…), a Literatura foi, pela primeira vez desde há cento e cinquenta anos, objecto de quase banimento: nos curricula do Ensino Secundário, onde foi remetida para um plano de evidente segregação (…) e nos próprios programas de Português onde, para além de ser colocada a par de outros tipos de discurso, se tornou objecto de um estudo estritamente comunicacional».
E depois aponta caminhos. Eis alguns: «ter a coragem lúcida de ponderar a recuperação de algumas das soluções que constituíam êxito no passado»; «recuperação doseada da História, enquanto forma privilegiada de densificar culturalmente o texto literário, e da retórica (que o transforma em artefacto estético)», isto é, «dar a conhecer os escritores portugueses mais representativos num quadro de inteligibilidade histórico-cultural»; ter presente que, «afinal, a Literatura serve para ensinar Língua mas também serve para transmitir muitas outras coisas importantes»; «maior ênfase conferida aos conteúdos e ao seu enraizamento em coordenadas de pensamento e de sensibilidade»; «fomento de uma atitude interpelativa perante os livros»; «aposta na formação de leitores como contrapeso ao efeito de saturação normalmente produzido nos estudantes»; adequação do ensino da Literatura aos vários ciclos do ensino.
Dois pontos são ainda de salientar:
«Enquanto condensação privilegiada da aventura humana (apresentada em proporções muito variáveis de verdade e de ficção) a escrita literária assume-se como testemunho do itinerário profundo da humanidade, em níveis mais vantajosos do que qualquer outra disciplina, incluindo a História e a Filosofia»;
«A Escola constitui, neste momento, o único espaço onde pode ocorrer a transmissão regular da cultura portuguesa», uma vez que «nem a televisão nem a família reúnem condições para desempenhar essa missão de forma sistemática».
Na parte prática do livro, JACB exemplifica com tópicos aliciantes e riquíssimos de sugestões para abordagem de textos de Gil Vicente, de Camões, de Miguel Torga e de Sophia. E aí está a ilusão por que este ensaio peca: onde é que estão hoje os professores capazes de dar aulas que se aproximem daquelas cujo modelo nos apresenta?
[artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” de 21 de Junho de 2006]