1939-2007 A amiga francesa do português
A francesa Solange Parvaux, pioneira na luta pelo ensino do português em França, morreu sábado, em Paris, aos 68 anos, de cancro. A importância de Parvaux para a promoção do português no seu país foi imediatamente sublinhada pelo embaixador de Portugal em Paris, que ainda no sábado divulgou um comunicado em que a classificava como «um verdadeiro arauto da Língua e da Cultura Portuguesas, função difícil de substituir». Nuno Júdice, antigo conselheiro cultural de Portugal em França, que está a preparar um desenvolvido artigo sobre Solange para o Jornal de Letras, disse ao “Sol” que, tendo ela «vivido sempre sozinha», acha que fez do «português a grande companhia da sua vida».
Solange Parvaux nasceu em Brive, Sul de França, a terra de Jacques Chirac, onde se organiza anualmente uma das principais feiras do livro do país. Ainda antes do 25 de Abril, quando estudava na Universidade Literaturas Ibéricas, e vivia especialmente tocada pelo espanhol, fez uma viagem de turismo a Portugal. Foi nessa altura que «descobriu» a nossa cultura, e deixou-se fascinar sobretudo pela língua. Passou a visitar-nos com frequência e entusiasmo. Depois de licenciada, ficou a ensinar português no liceu, e fundou a Associação para o Desenvolvimento dos Estudos Portugueses, Brasileiros, de África e da Ásia Lusófona (ADEPBA), de que foi presidente. Um membro da direcção desta Associação disse agora à Lusa que «Solange Parvaux foi a primeira que conseguiu abrir cursos de português no ensino oficial francês». E não parou nunca de lutar sempre por mais.
Com grande influência no Ministério de Educação de França, onde chegou a ser Inspectora-Geral, lutou não só por multiplicar o número de cargos de professores de português no ensino oficial, mas também por chamar às aulas, mais do que os imigrantes ou os seus filhos, os próprios franceses. Há uns anos, numa conferência que fez sobre o assunto, notava que o número dos estudantes de português no ensino secundário em França cresceu regularmente até 1988, com base em alunos de origem portuguesa (que representavam 72% dos 19.387 inscritos no ano lectivo de 88-89). Reconhecia que a partir daí diminuíram os estudantes (15.300 em 1998-99), mas concluía satisfeita que cerca de 70% eram já franceses que escolhiam uma segunda ou terceira língua estrangeira.
Nos anos 90, Solange comprou uma casa em Lisboa, mesmo em frente da Gulbenkian, onde, já reformada, tencionava passar longas temporadas. Acabou por vir menos do que queria, entregue em Paris à sua luta pelo português. Mas emprestava a casa a amigos que queria que conhecessem Portugal, sempre no empenho de difundir a nossa cultura.
António Monteiro recordou-a agora como «uma personalidade forte, frontal, mas, simultaneamente calorosa, dedicada e de um empenho total nas causas que defendia». Nuno Júdice lembra-a «extrovertida, mas cheia de dinamismo, com uma presença fortíssima». Não seria propriamente uma beleza, segundo os que a conheceram — e talvez por isso ficasse solteira e só, com maior disponibilidade para a sua causa.
Empenhada no ensino de português no nível secundário (e foi autora de vários manuais escolares), era também uma admiradora e consumidora da literatura portuguesa. E era tal o seu entusiasmo pela nossa cultura, que rejeitava o novo cinema português, com o argumento de que tinha «uma visão negra da sociedade». Defendia até a opinião de que, para não afectar uma imagem positiva de Portugal em França, era preferível não fazer grande alarde em volta dos cineastas mais jovens.
Também as artes plásticas contemporâneas não a atraíam (ao que parece, nem as portuguesas, nem outras quaisquer) — preferindo o período barroco. Mas entusiasmou-se com a azulejaria portuguesa antiga, sobretudo a popular e a religiosa — deixando também livros escritos sobre o assunto.
Já a música portuguesa a prendia mais — deixando-se também cativar especialmente pela mais tradicional, como o fado.
Como se adivinhará pela figura avantajada, um dos prazeres grandes da sua vida, para além da literatura e das artes barrocas, era a gastronomia. Tornaram-se célebres os jantares que dava em sua casa, cozinhados por ela própria, em que misturava com a mais sofisticada cozinha francesa algumas receitas portuguesas (com um lugar especial para os pratos de bacalhau seco).
Um Vocabulário Português — Portugal e Brasil, já apresentado na Gulbenkian em Paris, e a lançar no mercado em Janeiro próximo, é a sua última obra. Deixa também, a testemunhar a luta de toda a sua vida, e como uma espécie de efeito multiplicador, milhares de estudantes já formados, algumas centenas dos quais são hoje eles próprios professores de português no ensino oficial de França — e portanto também continuadores da mesma luta.
artigo publicado no semanário “Sol”, de 27 de Dezembro de 2007