«(...) [O] "espírito comunitário" entre as nações de língua portuguesa é, para ser gentil, meramente retórico (...).»
O discurso oficial acerca da cooperação entre os países e comunidades falantes da língua portuguesa tem cada vez menos a ver com a crua realidade dos factos. A cultura, invocada no início como o fundamento dessa cooperação, é gerida por cada um de maneira isolada, pelo que o espírito comunitário invocado pelos defensores iniciais dessa cooperação praticamente se extinguiu.
A economia, afirmada, a dada altura, como o esteio (e a salvação) dessa cooperação, também está a desconseguir: tal como na área cultural, é cada um por si. Contudo, é fundamental lembrar aos líderes dos países de língua portuguesa que, na verdade, qualquer comunidade assenta e depende de vários fatores, culturais, económicos, políticos, ideológicos e até geopolíticos.
Recordo que, no período em que os portugueses lutavam contra o fascismo, os africanos combatiam pelas suas independências e os brasileiros enfrentavam a ditadura militar de 64, os diferentes atores e protagonistas desses combates eram muito mais solidários do que são hoje os cidadãos dos países de língua portuguesa. Muitos deles conheciam-se mutuamente, pois estiveram juntos nas prisões, no exílio ou nas frentes de combate. A cultura, com destaque para a música e a literatura, tinha um papel reconhecido nesse relacionamento.
Mas isso foi no século passado. Presentemente, a "comunidade" de língua portuguesa não passa de um discurso da boca para fora. Problemas históricos e políticos mal resolvidos entre os diferentes estados dessa pretensa comunidade, ideologia e geopolítica, para citar apenas estes fatores, contribuem para isso.
Apenas para dar alguns exemplos no plano geral, Portugal tem notórias e crescentes dificuldades em conciliar a sua vocação europeia e sul-atlantista (africana e sul-americana), apesar de essa dupla vocação ser, por força da geografia e da história, absolutamente natural; o Brasil, apesar dos acenos dos vários governos liderados pelo PT, não avança na construção de uma verdadeira aliança geopolítica estratégica com o continente africano, como também seria natural, dada a herança africana do maior país da América do Sul; os países africanos estão literalmente perdidos, sem qualquer estratégia geopolítica digna desse nome.
No plano particular, a ideologia tornada dominante nas últimas quatro décadas está a desempenhar um papel crescentemente corrosivo no sentido de minar o espírito comunitário dos países e grupos de língua portuguesa. Assim, as elites portuguesas, sobretudo os jovens neoliberais e neoconservadores (há mesmo alguma diferença essencial entre eles?), julgam-se cada vez mais "europeus" e norte-atlantistas, esquecendo-se da herança árabe e africana do país e do seu potencial em termos geopolíticos. As elites brasileiras, maioritariamente, por enquanto, de origem luso-europeia, parecem intelectual e socialmente subservientes em relação a Portugal e à Europa, para não mencionar os EUA. As elites africanas, por fim, continuam a perder-se em debates estéreis entre autenticidades inexistentes (ou pelo menos dinâmicas) e aberturas inevitáveis e necessárias, desconhecendo que, assim como existe uma história do mundo dentro de África, sempre houve, desde os primórdios da humanidade, uma história de África dentro do mundo, o que é preciso assumir.
Um exemplo, para confirmar que o "espírito comunitário" entre as nações de língua portuguesa é, para ser gentil, meramente retórico: já o Instituto Internacional de Língua Portuguesa havia sido criado, quando Portugal resolveu criar o Instituto Camões. Por outro lado, foi recentemente anunciado que o Brasil criará igualmente um instituto para promover a língua portuguesa e a cultura brasileira no mundo, a que dará o nome de Guimarães Rosa. Quanto aos países africanos membros dessa fantasmagórica "comunidade" que atende pelo acrónimo de CPLP, parecem simplesmente desconhecer o potencial da cultura como instrumento de afirmação internacional.
Serão todos estes sinais misteriosos ou terrivelmente lamentáveis e trágicos?
Artigo de opinião publicado no Diário de Notícias de 30 de janeiro de 2023 e aqui transcrito com a devida vénia.