«De Braga a Canchungo, de Londrina a Baucau, de Newark ao Lobito, de São Vicente à Beira, de Penang à ilha do Príncipe, essa riqueza, que atravessa firmemente todas estas civilizações da língua portuguesa, emociona e permite reconhecer, aqui e ali, nos mais diferentes espaços e contextos, o sentimento de que não estamos sós no mundo.»
(Carlos Lopes, director da ONU, escritor, cidadão da Guiné-Bissau)
O professor Eduardo Lourenço não sabe o que é a RDP-África, e é natural que não saiba, porque outros 9 milhões e 900 mil portugueses também não sabem, e esse é um indicador preocupante do nível de conhecimento que Portugal tem, actualmente, de África. Os que sabem o que é a RDP-África estão entre a imigração africana em Portugal e, em maior número, nos países africanos de língua oficial portuguesa.
Feita esta pequena referência, permitam-me que diga, ainda em relação ao que aqui já foi dito pelos professores Eduardo Lourenço e António Dias Figueiredo, algumas palavras não previstas no texto que me atrevo a trazer a esta importante conferência.
Como o professor Eduardo Lourenço, eu também aprendi nas enciclopédias, mas deixei-me deslumbrar pela Internet e nela tive a felicidade de descobrir a entrada para a magia das mil e uma noites e não a tenebrosa caverna de Ali Babá, a que aludiu o distinto presidente desta mesa, professor Eduardo Lourenço.
A Internet abriu-me mais, muitas mais, janelas para o mundo, e apenas lamento que tendo Portugal descoberto, na Internet, grandes e requintadas auto-estradas de informação, ainda não lhes tenha acrescentado os seus próprios caminhos, mais modestos mas eficazes, e logo a começar por aquilo que nos traz aqui – a língua portuguesa.
Por outro lado, e reconhecendo o brilhantismo da projecção feita pelo professor António Dias Figueiredo, frio na revelação do aparentemente inevitável novo quadro que, no futuro, nos trará eficácia às acções, com sacrifício do conhecimento e da cultura, sublinho que não me conformo com visões centradas no pragmatismo que aponta para a elevação dos nossos índices de sucesso no caminho para o desenvolvimento económico.
Não aceito, sem luta, que quadros de vida venham (ou estejam já) a ser determinados por uma só ideia, a da eficácia, uma eficácia que sacrifique até os valores fundamentais da nossa construção identitária, e absorva os elementos de uma nova identidade, por forma a podermos seguir uma via americana de sucesso, com o suporte da língua que a alimenta.
Penso que podemos ser eficazes sem perdermos o traço principal da nossa cultura – a língua portuguesa. E penso ainda que a ligação à língua inglesa pode ser desenvolvida sem que se perca uma só palavra da língua que foi mãe da nossa identidade.
Reparo que começo a alterar, com estas notas rabiscadas, e diria que de forma quase radical, tudo o que tinha planeado e escrito, mas esta conferência está a desenvolver fenómenos dinâmicos, e algumas das pistas que já produziu tocaram a minha sensibilidade, também por se constituirem em sinais que são típicos da condição portuguesa.
Em síntese, já por aqui perpassaram sinais que indicam, mais ou menos, algumas situações: «O que eu faço é bom e, portanto, copiem-me»; «O que eu faço não é o que eu gosto e acho certo, mas não me deixam fazer outra coisa, e sou, assim, uma vítima»; «O caminho é este e, lamento, é irreversível, precisamos de ser pragmáticos».
Sem qualquer certeza, prefiro deixar uma pergunta: em vez de queixas e previsões, não será preferível definirmos um centro de reflexão onde, a partir das nossas experiências individuais e das nossas opiniões, possamos chegar a alguma conclusão e definir um rumo?
A esta conferência eu quis trazer, apenas, a minha experiência profissional de vida, sem saber se ela pode ser útil à língua portuguesa, juntando-lhe a certeza de também ter cometido pecados nesta área, que deveria ser sagrada. Pecamos todos, ou temos pecado todos, provavelmente mais por omissão que por acção, e assim concluo que, neste já longo processo de degradação da língua portuguesa, não há inocentes – somos todos culpados pelo estado a que ela chegou.
Ouvi, com muita atenção e proveito, as intervenções que situaram as questões da língua portuguesa em elevados níveis de ciência, de conhecimento e de cultura.
Por mim, situo as questões no plano em que actuo, como operacional da língua, como simples profissional de rádio que, no entanto, teve a sorte de uma escola, de uma família e de amigos mais velhos que abriram todas as janelas, para a língua, para a leitura e, principalmente, para a curiosidade, e, ainda, a felicidade de poder desenvolver, nos últimos nove anos, uma emocionante e rica experiência de comunicação Portugal-África, por um lado, e com africanos, em África e em Portugal, por outro.
Julgo ter um bom quadro revelador da situação da língua, dos problemas que ela enfrenta e do muito pouco interesse que tem existido na resolução desses problemas.
Tão golpeado pela indiferença como a língua o tem sido, não abandonei, porém, a luta e continuo a colocar esta questão no plano geográfico português, mas, também, no mais largo espaço da CPLP, sabendo que outros campos existem no mundo de outras línguas e, aqui, em Portugal, na área da imigração.
Não deveria ser assim, e atormenta-me o facto de termos hoje novas e fantásticas armas de apoio a uma política cultural da língua, se a houvesse, mas de nem sequer as velhas e muito menos fortes armas estarmos a usar, o que parece dar razão ao que o Presidente da República aqui disse esta manhã – temos sido pouco militantes e muito diletantes, e dizemos muito, agindo, porém, pouco.
A minha experiência de comunicação nos últimos nove anos revela-me o vazio, o desinteresse e o desperdício na forma como Portugal se relaciona com o seu principal elemento cultural, não sendo, sequer, capaz de dar respostas a projectos simples de comunicação sustentados pela língua em que comunicam oito países e oito povos.
Tenho, ao longo desta minha fascinante aventura radiofónica, sugerido muitas coisas.
Por exemplo, o aproveitamento de muitas competências lusófonas que se concentram em Portugal para uma profunda e, eventualmente, eficaz reflexão global sobre formas úteis de dinamizar o português, a partir das nossas actuais oito vozes.
O estabelecimento de parcerias com órgãos de comunicação social da CPLP, sobretudo no plano da rádio, que é a área em que actuo, para iniciar programas conjuntos de comunicação em português, envolvendo mesmo a possibilidade de rotação de jornalistas, visando não apenas o melhor conhecimento possível das nossas realidades nacionais e da nossa comunidade, mas também o desenvolvimento de acções de formação e informação, incluindo a área da língua portuguesa, para além da possibilidade de exploração alargada de um campo que nos é já comum – a Internet.
O início de projectos de construção de materiais de suporte à aprendizagem e ao enriquecimento da língua, baseados no que tem sido feito, ao longo de muitos anos, pela BBC e cuja utilização poderia orientar-se para vários planos – rádio, televisão, Internet, e, ainda, com suportes digitais disponíveis para oferta e venda.
A utilidade de um qualquer sistema de apoio ao envio de livros e jornais, principalmente desportivos, para a África que fala português, ou de alguma parceria que permita a leitura, em África, em português. Há, hoje, mecanismos informáticos que facilitam projectos desse tipo, e eu próprio tentei ser ponte entre uma entidade angolana interessada e o jornal português A Bola, a partir de uma vontade de produzir um jornal A Bola em Angola, com partes relativas ao desporto português, com material enviado de Lisboa, e ao desporto angolano. Alguma desconfiança empresarial travou, no entanto, o nascente projecto.
Tenho-me indignado com a falta de estímulo que, em Portugal, existe em relação à produção cultural africana em língua portuguesa, bastando chamar a atenção para essa coisa inconcebível de não dar a rádio em Portugal espaço à música africana em língua portuguesa, ou em crioulo, que é uma língua construída a partir do português, impedindo, assim, que cumpra a «mestiçagem da língua», considerada, esta manhã, enriquecedora pelo professor Victor Aguiar e Silva. Portugal continua a erguer o muro que trava a cultura africana lusófona obrigada, naturalmente, a procurar outros abrigos, acolhendo-se, por exemplo, em França, mais avançada na multiculturalidade e muito interessada em ocupar terrenos que outros países deixam ao abandono…
E tenho, finalmente, lamentado a questão fechada que ainda é, em Portugal, a que se relaciona com a integração dos que chegam de outros «países co-proprietários da língua», socorrendo-me, de novo, do professor Aguiar e Silva. Em Portugal, os imigrantes aprendem o português básico necessário ao trabalho e não o aprendem com a ambição que a cidadania impulsiona, o que limita o enriquecimento cultural de Portugal, que continua a limitar a língua aos seus nacionais, que são os que votam e fazem parte da nação. Eis como uma questão social também condiciona o desenvolvimento da língua portuguesa.
Nos discursos com que habitualmente definimos a existência desta nossa «pátria da língua portuguesa», somos mais de 200 milhões de falantes, mas, na realidade, é preferível dizer que há 200 milhões de pessoas nos territórios onde é oficial o uso da língua portuguesa. Só na minha província angolana natal, a do Cunene, 75 por cento das pessoas não falam português.
São muitas pessoas, muitos países e, também, muitos problemas, alguns dos quais semelhantes aos de outras línguas, e um deles mesmo igual, que é o problema do avanço, quase imparável da língua da globalização. No entanto, a Espanha não apenas resiste ao inglês como continua a avançar e com vigor, enquanto a França está, agora, a inventariar problemas e a considerar as soluções.
Portugal, neste como, infelizmente, noutros campos, está parado, e a CPLP, que é o nosso corpo linguístico global, está como Portugal – também estática. Só nós, os que andamos nos terrenos populares desta «pátria da língua portuguesa», nos preocupamos, porque, afinal, ainda nos emocionamos com os vínculos que a língua criou e continuar a criar.
Como diz o guineense Carlos Lopes, que é uma das grandes figuras da cultura baseada na língua portuguesa, «de Braga a Canchungo, de Londrina a Baucau, de Newark ao Lobito, de São Vicente à Beira, de Penang à ilha do Príncipe, essa riqueza, que atravessa firmemente todas estas civilizações da língua portuguesa, emociona e permite reconhecer, aqui e ali, nos mais diferentes espaços e contextos, o sentimento de que não estamos sós no mundo».
Um tão elevado número de falantes da língua e a riqueza destas civilizações da língua portuguesa não têm sido alavancas suficientemente fortes para fazerem mover Portugal e a CPLP no sentido da definição de uma política cultural que trave, num primeiro momento, a degradação do português, e faça nascer, no momento seguinte, novos movimentos de valorização, expansão e afirmação da nossa língua.
A crítica à passividade lusitana e ao desregulado uso da língua, e, também, a denúncia do desrespeito pelo principal valor cultural português, têm sido feitos, principalmente, por intelectuais africanos, gente de sólida cultura lusófona e, sem dúvida, grandes «patriotas da língua portuguesa», sendo, eventualmente, como alguns afirmam, inflexíveis personalidades na relação com a norma da língua.
Arlindo Barbeitos, que se define como um «angolano moldado pela atenção à palavra falada, que a tradição oral cunhou entre nós, e pelo gosto e respeito à língua manejada a preceito», não esconde «a sensação de escândalo ao verificar o que o rodeia», irritando-se com «o redemoinho de “pás” e de “percebes”, quando ainda não há nada a entender, que salpica a fala de uma cacofonia inconveniente», perturbando-se com «a música de palavras consonantizadas, com falsas ressonâncias eslavas, e cujas terminações, esbatendo-se, apenas se adivinham».
«E – diz, ainda – todo este discurso, não raro quase incompreensível ao meu ouvido, se eriça aqui e acolá de termos anglo-saxónicos abstrusos.» Outro angolano, José Eduardo Agualusa, numa crónica com o título A propos de la lusophonie, em que lembra um encontro em França para divulgação da literatura e da música dos países de língua portuguesa e no qual estiveram cinco escritores portugueses, cinco africanos e um brasileiro, leva-nos para outro dos problemas da língua portuguesa. «Os portugueses falaram todos em francês, sempre em francês, num francês esplêndido, expurgado do mais remoto rumor do idioma pátrio. Os africanos falaram em português, e o brasileiro hesitou, entre uma língua e outra.»
O escritor angolano fez, na altura, uma referência crítica ao discurso francófono dos portugueses, mas logo um deles lhe respondeu dizendo que «os escritores portugueses falam sempre em francês, porque sabem falar francês». José Eduardo Agualusa calou-se, mas, diz, sem conseguir imaginar «um congresso sobre literatura francófona, em Lisboa, durante o qual toda a gente fale em português».
Diz mais José Eduardo Agualusa, puxando outro e sério problema.
Muitos dirigentes portugueses «dispensam o nosso obscuro idioma nas reuniões internacionais. Os portugueses choram de orgulho, muitíssimo deslumbrados. Lusófonos, sim, lusófonos sempre. De preferência em francês, que é uma língua mais civilizada, mas lusófonos».
A propósito, lembro que dois presidentes lusófonos, de Moçambique e São Tomé e Príncipe, falaram em inglês, na recente abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Falaram sem protesto, sem escândalo, sem a mais leve reacção. E, seguramente, não houve qualquer concertação lusófona prévia.
Ficam, suponho, caracterizados, por um lado, o poderoso mundo que comunica em português, e de que uma parte substancial depende desta nossa língua, seu único porto de abrigo, sua única forma de comunicação, entre si e com os outros, sua única via para o desenvolvimento; e, por outro lado, alguns dos muitos problemas da língua portuguesa, com referência crítica complementar a uma certa área de responsabilidade que se situa ao mais alto nível, nos nossos países da CPLP.
Portugal deve ter consciência da matriz linguística que lhe está associada e não pode eximir-se à responsabilidade de uma criação que o obriga, agora, a uma ligação eterna à criatura, e isto só é válido se já não merecer a pena referir que em causa está a língua portuguesa, o principal valor cultural do nosso país.
Projectado o primeiro campo, permitam-me que avance para o seguinte, que é o da degradação da língua, um fenómeno acelerado pela pressão da língua inglesa, que é o instrumento da globalização que marcha, como se sabe, de forma selvagem pelo mundo.
O fenómeno da língua inglesa tem duas marcas principais – a da imposição, natural, de um instrumento de comunicação global comum, rápido e fácil; mas, também, a da cumplicidade, lamentável, de sociedades, como a nossa, que, tendo as suas próprias formas de comunicação, delas abdica para abraçar, com pragmatismo, oportunismo ou cosmopolitismo, a língua dominante.
O brasileiro Luís Fernando Veríssimo, escrevendo, um dia, sobre a «capitulação», sintetizou, de forma exemplar, a situação do português cada vez mais dobrado pela força da língua inglesa:
«Delivery, até prà Telepizza
é um exagero.
Há quem negue?
Um povo com vergonha da própria língua
Já está entregue.»
A multiplicação de palavras e expressões inglesas na nossa comunicação quotidiana, em contraste com a cada vez mais audível degradação do português, pode levar-nos a considerar que estamos, já, na fase em que cuidamos mais da pronúncia do inglês do que do rigor no uso da língua portuguesa.
As responsabilidades atravessam toda a nossa sociedade, mas há que considerar a responsabilidade especial das nossas elites.
Das elites indiferentes para as bases contaminadas, descobre-se o percurso de uma língua portuguesa golpeada, esquecida, empobrecida, na construção e no vocabulário, e agora também em processo de substituição crescente, com a nossa elite cultural a não resistir ao brilho de uma palavra ou uma frase inglesas, bem na linha tradicional de uma escrita que, em Portugal, se deixava seduzir, antes, por palavras francesas que chegavam de Paris acompanhando roupas e perfumes.
Passo a passo, mais curto um, ou mais longo outro, se chegará, assim, ao limite, ultrapassado já por uma faculdade brasileira que resolveu organizar um seminário internacional do qual excluiu a língua portuguesa, optando, como línguas de discussão, pelas línguas inglesa, francesa, alemã e espanhola…
Há soluções para estes problemas da língua?
Sim, há, e são fáceis.
As elites portuguesas, políticas, económicas, empresariais, universitárias, e a nossa comunicação social, devem comprometer-se com a língua portuguesa, usando-a com a responsabilidade de quem lhe deve a máxima qualidade possível, em nome, se nada mais valer, da História e da dimensão desse principal valor cultural do país.
No quadro relativo aos órgãos portugueses de comunicação social, julgo importante, para além da adopção de um código de conduta para o uso da língua portuguesa e de uma assistência interna especializada, que se inventarie o ensino da língua nas faculdades de onde estão a sair os jornalistas e os comunicadores.
Josué Machado, que escreveu, no Brasil, um Manual de Falta de Estilo, muito crítico da ligeireza dos comunicadores no uso do português, salienta que a comunicação social «tem o dever de comunicar com clareza, precisão, exactidão e correcção», e Eduardo Martins, autor do Manual de Redação do jornal Estado de São Paulo, afirma que «o jornalista fala com o povo e deve ser um eleito na questão da língua, porque se prepara para a comunicação, devendo questionar-se o ensino da língua nas faculdades de Jornalismo».
Esta tese brasileira aplica-se a Portugal e deve ser feita uma pergunta às faculdades de Jornalismo, em Portugal: de que forma estão a ensinar a língua portuguesa aos futuros comunicadores?
Nos jornais, em que o problema se revela menos grave, por serem menores e menos intensos os factores de pressão, importa, também, o esforço de escrever melhor porque constituem, em muitos casos, os primeiros espaços de leitura para muita gente e, ainda, os mais importantes espaços de encontro de muitos portugueses com a palavra em português.
Há, porém, problemas mais complexos, porque tocam em questões que, sendo técnicas e, em alguns casos, profundamente técnicas, precisam de enquadramento político, e o problema da política, quando ligada a alguma necessidade, às vezes apenas eleitoral, de produzir reformas, é que se coloca num plano de curto prazo, não tendo a consciência de que áreas sensíveis da vida de uma sociedade precisam de projectos estáveis, em que as alterações terão de ser, sempre, valores acrescentados de uma política e de um objectivo.
Penso que devem ser aqui colocadas novas questões: como se desenvolvem, actualmente, o «ensino da língua» e o «ensino na língua»?
O brasileiro Josué Machado considera que «a língua se aprende lendo e escrevendo, isto é, fazendo uso dela, de preferência com bons padrões como modelo e estímulo», citando, como exemplo, Machado de Assis, que «aprendeu a língua por ser um talento raro e por ler muito, apesar da falta da escola formal, num século, o XIX, em que o ensino do português era baseado em clássicos, alguns bem menos distantes dele».
Outro brasileiro, António Góis, talvez tenha colocado um dos dedos numa das feridas, ligando a perda do hábito de leitura à degradação do ensino. Ele considera que, «garantida que está a quantidade, deve garantir-se, agora, a qualidade, para todos».
«Dantes – prossegue – a escola atendia aos ricos, e agora atende a todos, e o problema é que a escola falhou ao não conseguir manter para todos esses novos estudantes de agora a mesma qualidade de ensino que dava aos filhos da elite no passado.»
Este tempo novo que vivemos, que é de sobressaltos e, também, de pessimismos, está a entregar-nos, porém, exaltantes meios de acesso ao conhecimento, como é o caso da Internet, com todas as novas ferramentas associadas, que, em Portugal, está, ainda, muito deficientemente explorada, continuando a ser extremamente difícil descobrir percursos de resolução urgente de problemas ligados à língua portuguesa e não menos fácil a abertura de criativos instrumentos de estudo e especialização.
Portugal precisa de investir na Internet, e, num exemplo de necessidade básica, necessita de nela colocar, de forma livre, fácil e eficaz, dicionários e/ou prontuários, explorando, ao mesmo tempo, campos de consulta avançada, aproveitando, eventualmente, o que já existe, e lembro, aqui, o Ciberdúvidas, um projecto importante, desenvolvido por dois homens da «pátria da língua portuguesa», José Mário Costa e o falecido João Carreira Bom.
O projecto abriu um percurso, mas segue-o a duras penas, por indiferença geral e falta de apoios.
Na parte final desta minha intervenção, dirijo-me aos que partilham, com os portugueses, a propriedade da língua, nomeadamente a quem surge menos apetrechado para descobrir caminhos alternativos de desenvolvimento que não partam da base da língua portuguesa.
Os países africanos de língua portuguesa e Timor-Leste têm os falantes de português que se confrontam com problemas que são mais facilmente resolvidos nas sociedades mais desenvolvidas, como são a portuguesa e a brasileira.
Muitos desses falantes têm, nesta língua portuguesa, o seu único abrigo e a sua única ferramenta de vida.
Tenho oito anos de experiência, intensa e fascinante, na comunicação Portugal-África, sustentada na minha língua materna, o português, e conheço os problemas e sei de muitas frustrações lusófonas nesta matéria.
Não tenho soluções para os problemas da língua, mas apenas um mero conjunto de experiências que permitem o levantamento de algumas possibilidades, que podem vir a ser exploradas numa discussão que prossiga sobre os problemas da língua.
A dimensão do espaço da nossa lusofonia deve levar-nos, primeiro, para o objectivo de colocar a língua portuguesa, com o destaque que ela já merece, nas grandes organizações internacionais.
O importante e necessário desafio da afirmação da língua portuguesa e das coisas ligadas à língua nos grandes organismos internacionais não tem sido jogado e, pode dizer-se, pela estranha falta de comparência da nossa CPLP, que se deve, creio, a algum não menos estranho complexo de inferioridade que existe, talvez também a um certo fascínio pela sofisticação, provavelmente ainda pelo conformismo dos que não gostam do esforço e pensam que nada já se pode fazer em favor da língua portuguesa.
Num recente e irritado contacto com um funcionário lusófono da ONU, em Nova Iorque, pretendendo conhecer o motivo da exclusão da área lusófona de um grande encontro de órgãos de comunicação social sobre projectos de saúde em África, tive uma dessas respostas desistentes: «Nada se pode fazer contra o bloco anglo-saxónico»…
Eu digo que pode e deve fazer-se muito, e muito melhor, desde que se conte, na luta, com o envolvimento dos funcionários lusófonos, do topo à base, realmente mais interessados no desenvolvimento do seu mais importante traço cultural do que na sofisticação de relações em inglês nas luxuosas salas dos contactos internacionais.
Haverá alguma indicação nesse sentido? Alguma política? Algum manual? Um conjunto de recomendações, ao menos?
Depois, devemos considerar que a presença cultural da língua portuguesa em múltiplos espaços do mundo e, sobretudo, nos espaços da lusofonia, deve constituir não uma obrigação mas uma necessidade vital da nossa política externa, concentrando energias nas respostas eficazes a dar aos nossos leitorados, centros culturais e de estudos, escolas fora do país, à formação de professores e a respostas rápidas a necessidades de países que residem nesta nossa casa linguística.
Sei do que falo, quando refiro a questão de uma política cultural da língua que alcance todos os seus falantes, e conheço situações que afectam até, e profundamente, jovens portugueses que frequentam escolas portuguesas em variados pontos do mundo.
No Lubango, Sul de Angola, por exemplo, existe uma estupenda escola portuguesa, construída com esforço, frequentada por alunos portugueses e angolanos, e em cuja entrada está um busto de Camões, recuperado, quase por milagre, do lixo para onde fora lançado na fervura da revolução angolana.
Essa escola não recebe de Portugal o estímulo que merece, e o espírito que lá se descobre é de desânimo, reconhecendo os seus responsáveis que Portugal fica longe de mais e que o que é feito no Lubango não é prioritário.
Aquela escola limita-se, afinal, a defender a língua portuguesa, num espaço remoto de um distante país africano.
Será difícil imaginar uma rede que ligue as escolas portuguesas espalhadas pelo mundo, para apurar dificuldades, captar sinais, responder a questões, desenvolver diálogos e iniciativas, contribuir para o reforço de programas e de conteúdos?
Não é possível fazer convergir projectos, ordenando-os, hierarquizando-os e encontrar formas de potenciar meios, pessoas e energias?
É impossível fazer convergir projectos para um centro capaz de os dinamizar, aproveitando melhor as energias, os meios e o dinheiro?
E não é realizável um projecto que una os nossos países na projecção regular de possibilidades de aprofundamento de necessidades no domínio da língua? São de excluir as possibilidades de levantamento de necessidades, humanas e técnicas, tentando, em função disso, descobrir soluções que respondam a necessidades de algum, ou alguns, dos estados da CPLP?
É fundamental, creio, termos a noção da importância da situação da língua portuguesa nos países que a falam, principalmente em África, cenários de poucas posses e reduzidas capacidades.
O futebol português é, ainda, o grande elemento de ligação afectiva entre África e Portugal, e espanto-me com a ausência de qualquer apoio à difusão de jornais portugueses, sobretudo desportivos, nos PALOP, sendo, como são, um extraordinário veículo de aprendizagem da língua, ou de aperfeiçoamento dela.
Há que falar, ainda, dos livros que não são lidos nem comprados, os livros que são queimados ou sepultados em arrecadações, e aqui estamos perante mais um problema do nosso tempo.
Os livros existem para que sejam lidos, e nem uma oportunidade deve ser desperdiçada para que possam vir a ser lidos. Devem ser oferecidos a escolas e a outras instituições, enviados para os países nossos parceiros na língua portuguesa, colocados nas rotas dos que querem ler e não têm acesso à leitura.
Finalmente, falemos da rádio, da nossa pobre e desprezada rádio de hoje e que ainda é um fundamental meio para muita gente, sobretudo na África que fala português, podendo, num futuro próximo, voltar a ser o poderoso instrumento de democratização que foi quando nasceu, no início do século passado.
Alguém disse, recentemente, que a rádio, num mundo em que não se lê, pode, pelo menos, fazer-se ouvir, e se não pode pôr o mundo a ler, pode pôr o mundo a escutar, talvez voltando a despertar a consciência das sociedades para muitos dos seus direitos, actualmente esmagados por um quadro comunicacional que apela para o desaparecimento da curiosidade, para o abandono da cultura e para a desistência da aprendizagem.
A comunicação audiovisual poderia ser um decisivo instrumento ao serviço da língua portuguesa e da lusofonia, se os poderes de Portugal e da CPLP já tivessem inventariado as necessidades e as possibilidades de uma comunicação global em português, com a vantagem de se poder desenvolver uma ligação estreita entre as estruturas nacionais e públicas de comunicação, mas todas as ideias, todas as sugestões, todas as propostas, todos os apelos têm esbarrado no autismo de Portugal e dos outros países da CPLP.
Não há muito tempo, Juan Luís Cebrián, fundador do jornal espanhol El País, disse, numa entrevista à revista Pública, que «Portugal tem a grande oportunidade de trabalhar no português», lembrando que «as pátrias são as línguas, não os Estados, os governos, as bandeiras». E sublinhou o seguinte: «A pátria da indústria cultural e mediática é a língua, e a indústria portuguesa de media devia saber que existe essa oportunidade.»
A língua portuguesa tem gente tão altamente capacitada, que não deve ser difícil descobrir algum centro para onde essa gente possa convergir e iniciar um trabalho que ajudará a melhorar, gradualmente, o uso da nossa língua e provavelmente contribuir para que novas gerações saibam ler e escrever melhor, saibam compreender bem a língua, saibam reflectir nessa língua, e chegar a níveis de produção de ideias que ajudem o nosso país e a nossa CPLP a crescer e a chegar a novos horizontes de desenvolvimento.
O que é preciso é que a língua portuguesa seja considerada como o mais importante valor cultural de Portugal e da organização chamada CPLP.
O que não é possível é voltar a ouvir um alto funcionário de um Ministério da Cultura dizer, numa reunião sobre formas de valorização da política da língua portuguesa, que não percebe o que está a fazer numa reunião sobre a língua, que é uma questão do âmbito do Ministério da Educação.
Comunicação lida na Conferência «A Língua Portuguesa: Presente e Futuro», organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, com o patrocínio da Presidência da República, realizada em Lisboa, em 6 e 7 de Dezembro de 2004