Meus Amigos:
Chego aqui vindo de muito longe. De um tempo de silêncio, que nos coagia a escrever baixinho e a sobreviver sob a forma de soturnas elegias. Nessa reserva amarga e implacável, recusávamos a derrota sem saber muito bem que realidade nova desejávamos. Por outro lado, eu relacionava a experiência dos outros com pesquisas pessoais, aplicando-as à qualidade da minha revolta. Proveniente de famílias operárias, admitia que esse conhecimento, simultaneamente excitante e assustador, representava o viático para a jornada que queria empreender.
A minha pia de baptismo literário foi a Página Infantil do “Diário Popular”, de cuja tipografia o meu Pai era chefe. A Página Infantil era dirigida por um homem doce e ameno, José de Lemos, que me tratava com ternura e me ensinou a amar as coisas singelas. Eu tinha 14 anos: um miúdo a escrever para miúdos. Depois, passei para a secção "Um Conto Por Dia", onde publicava pequenas narrativas sobre gente desgraçada, aflita e decente. Gente do meu bairro, a Ajuda, a Colina de Cristal, minha memória afectuosa, meu mapa lírico e, também, a minha ponte entre isto e aquilo. Falava de ruas e de quem lá vivia, como se quisesse descrever o mundo na sua particular pluralidade e na relatividade da condição humana. E afinal o mundo não será um emaranhado de ruas e um labirinto de bairros?
O que aos contarelos faltava em gramática, sobrava em sobressalto e em exaltação. As coisas, porém, não eram tão simples quanto pareciam. Não foi a meio do caminho que havia uma pedra: havia muitas pedras a meio do caminho, e surgiram, aguçadas como puas, logo no começo. Aprendi que há palavras perigosas quando a Censura cortou a azul a emoção vermelha de uma história que falava de meninos perdidos. Percebi que o incidente nada possuía de aleatório. Mas incitou-me o entusiasmo juvenilmente romântico. A construção da minha identidade social começou, nebulosa e indecisa, com esse facto e, através dele, o que determinaria a característica de um projecto pessoal. Quero dizer com isto que a rudeza do tempo permitia a oportunidade de convertermos a experiência em consciência, e ambas em destino. Escolher foi o dilema essencial da geração a que pertenço, exactamente porque os melhores de nós não queriam abandonar esse destino nas sepulturas da indiferença. Reconheço haver algo de celebração mítica nesta afirmação. Porém, aprendi que nada nem ninguém estão a salvo da História. E nunca esqueci aqueles que ajudaram o rapaz que fui a ser o homem que sou.
Nomeio-os com o orgulho dos primeiros momentos, e a emoção de quem lhes deve o ensinamento do poder impetuoso da palavra. Acúrsio Pereira, meu inesquecível mestre de jornalismo; Aquilino Ribeiro, cujo empenhamento maior foi o de nos dizer quem éramos e quem somos, através de um majestoso edifício verbal. E com estes dois, a seu lado, garantindo compatibilidades e legitimando a força que as gerou – Carlos de Oliveira, Alves Redol, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, Fernando Namora, João José Cochofel, Fernando Lopes-Graça, Mário Dionísio, Manuel Mendes, Fernando Piteira Santos, Joaquim Namorado, Augusto Abelaira. Sejam quais tenham sido posteriores dissídios eles nunca traíram os compromissos assumidos.
Falando de compromissos, falo do propósito destes homens (e de muitos outros mais) em exemplificar a declaração tremenda de que a batalha pela liberdade implica a recusa da mentira e da omissão, e uma permanente resistência à opressão e à tirania. Creio, modestamente embora, ter prezado o legado transmitido, e, apesar de tudo parecer querer inculcar-nos o contrário, ainda hoje acredito no progresso como imperiosa necessidade histórica.
Se me interrogar acerca das condições de validade de conceitos e de métodos, direi que pertenço a uma família literária, jornalística e ideológica que procedeu a uma incessante e renovada relação entre História e memória. Tudo quanto vemos esconde sempre outra coisa. Carlos Queiroz, um belíssimo poeta esquecido, disse-o, melhor do que todos:
Ver só com os olhos
É fácil e vão:
Por dentro das coisas
É que as coisas são.
É nosso dever não nos determos na figura da representação, mas sim conseguirmos estabelecer o apropriado vínculo entre associação e anúncio. No tumulto da nossa imperfeita condição de homens, é forçoso procurarmos a «verdade», tomando este conceito com todas as precauções devidas, porque não há uma só verdade, mas sim programas de verdades, indutores da noção de que toda a verdade é derivativa. As relações sociais que narramos não podem ser reduzidas a uma série de relações formais. O jornalismo deve ser praticado como uma tomada de consciência; a literatura, como moral em acção. O escritor conta uma história, para acrescentar a sua perspectiva pessoal ao conhecimento que temos do homem. O jornalista desmonta-a, dando-lhe o nexo da fragmentação, para que ajuizemos o conjunto, e fiquemos prevenidos de qualquer mal-entendido. Ambos, jornalista e escritor, completam-se. E a disjunção entre literatura e jornalismo é assunto de ordem corporativa, não um problema de natureza vital. Escrever é sempre lugar de encontro e de procura do outro. E, com o tempo e com a prática, descobrimos que as coisas insignificantes devem ser tratadas com a maior seriedade.
Chego aqui vindo de muito longe. Não importa o que fiz ou o que não fiz. Fui fazendo, na ilusão, um pouco louca, um pouco presunçosa, de que podia ser útil aos contemporâneos, revalorizando os meus textos num horizonte ampliado. Por vezes, e quando foi preciso, troquei a caneta pelo trabuco. Corri os riscos que havia a correr. A opção cultural não é uma questão de previsões, de cálculos ou de estatísticas. A escolha política nasce sempre de fortes imperativos éticos e de decisões morais. Não saio disto. O importante é que preservei esse traço de união que religa as gerações, procurando prosseguir o diálogo que me fora emprestado pelos meus antigos mestres, pelos meus velhos camaradas, cujas memórias evoco com orgulho, vaidade e emoção. Assim tenho vivido e escrito: no limiar do desassossego que torna cúmplices o coração e a razão. E até hoje, depois de tanto e tanto caminho andado, ainda se me impõe o mandado antiquíssimo de que há tanto para saber – e tão pouco tempo para aprender.
Aqui estou. Velho tarimbeiro de uma estranha profissão, a de perfilar palavras – na apaixonada e desmedida vontade de lhes atribuir o sentido do humano e da honra. Aqui estou. Com o chapéu na mão por causa do respeito. Com a outra no coração por causa da amizade.
Texto lido na noite de 13 de Setembro de 2005, uma terça-feira, na homenagem ao jornalista e escritor Baptista-Bastos, prestada no Auditório Lurdes Norberto (Linda-a-Velha, Lisboa), por iniciativa de Armando Caldas