«É precisamente devido à enormidade do peso demográfico no Brasil que o português tem dimensão mundial», escreve a jornalista São José Almeida, no diário português “Público” do dia 26 de Julho de 2008, a propósito da aprovação de uma estratégia de reconhecimento e promoção da língua portuguesa pelo Governo de José Sócrates. Por isso – acrescenta – «era bom que, em vez de se ofenderem com a agressividade do Brasil na concretização da sua política da língua (...), os velhos do Restelo portugueses aceitassem o facto de que o Brasil tem a dimensão e o peso demográfico que tem. E que se assuma que é precisamente devido à enormidade do peso demográfico no Brasil que o português tem dimensão mundial e é a sexta língua em número de falantes.» Texto integral a seguir, com a devida vénia à autora e ao jornal que autorizaram a sua reprodução.
Finalmente, há um Governo em Portugal que descobriu a língua portuguesa e a assume como arma diplomática. Mais: fá-lo sem ignorar a relatividade do peso dos falantes de português de Portugal, logo assumindo uma política da língua no seio da comunidade mundial de falantes de português, ou seja, no âmbito da CPLP e, sobretudo, tentando estar em sinergia com o Brasil.
A aprovação de uma estratégia de reconhecimento e promoção da língua portuguesa é um passo importantíssimo para a afirmação internacional de Portugal e só a ignorância e o desleixo de uma elite dominante tem adiado o assumir desta questão como primordial. Desleixo que teve picos como, por exemplo, o vivido no Governo de Durão Barroso em relação ao ensino de português junto das comunidades portuguesas na Europa, em que o Governo PSD-CDS tratou de desapoiar o pouco que tinha sido feito pelo Governo de António Guterres, nomeadamente por Ana Benavente, no Ministério da Educação, e por Jorge Couto, no Instituto Camões.
É importante que seja oficialmente assumida – como fez o Conselho de Ministro de 16 de Julho – «uma estratégia para o reconhecimento e promoção da língua portuguesa, visando a sua promoção como instrumento fundamental de educação, formação e capacitação institucional, no âmbito da cooperação para o desenvolvimento, bem como enquanto instrumento de internacionalização económica, de divulgação cultural e de ligação às comunidades portuguesas».
Louvam-se assim as medidas e instrumentos anunciados como a reestruturação do Instituto Camões. Assim como se louva a criação da «comissão interministerial com o objectivo de desenvolver um plano de acção de valorização do património cultural de origem portuguesa». E também a criação do Fundo da Língua Portuguesa, com uma verba inicial de 30 milhões de euros, que irá proporcionar a colocação de professores de português: 500 para as comunidades portuguesas, 200 para Angola, 40 para a Guiné e 30 para Timor.
José Sócrates parece ter finalmente percebido aquilo que a Espanha percebeu há muito, que a língua é uma arma diplomática. A Espanha fez da hispanidade uma questão de Estado e assumiu uma política expansionista e eficaz de afirmação do castelhano no mundo, enquanto Portugal olhou de soslaio a lusofonia, encarou os países falantes de português em África como colónias que deviam à metrópole o dever de obediência, achou-se com direitos de propriedade eterna e por direito divino sobre a forma de escrever e falar o português, limitando-se a criar no papel uma organização de caricatura para defesa da lusofonia: a CPLP.
Agora, associado à adopção de uma política da língua surge a possibilidade de finalmente revitalizar e dar dimensão à CPLP, como veículo da afirmação do português no mundo. Espera-se que as intenções não se fiquem por isso mesmo. E que Portugal não tenha medo de assumir a sua pequenez territorial para poder estar ao lado da comunidade de falantes da língua que é comum a todos e não é propriedade de ninguém. Como declarou o secretário de Estado João Cravinho ao ”Público”: «Não é um país com dez milhões de habitantes que vai conseguir afirmar a língua como património universal». Que esta noção de dimensão não desapareça, antes substitua o bafio e a pesporrência de quem se acha dono da língua.
Há 230 milhões de falantes de português em todo o mundo, dos quais dez milhões são portugueses e atingindo o Brasil os quase duzentos milhões. Ora, é cristalino que Portugal tem não só que adoptar uma política de língua, mas fazê-lo no âmbito da comunidade de falantes e ao lado do Brasil, país que – felizmente para a dinâmica da língua portuguesa no mundo – tem uma política da língua não só dirigida às comunidades brasileiras que vivem, por exemplo na Europa, como também aos países lusófonos de África.
Era bom que, em vez de se ofenderem com a agressividade do Brasil na concretização da sua política da língua — o último motivo de espanto é que o Brasil vai fundar uma Universidade Lusófona no Ceará —, os velhos do Restelo portugueses aceitassem o facto de que o Brasil tem a dimensão e o peso demográfico que tem. E que se assuma que é precisamente devido à enormidade do peso demográfico no Brasil que o português tem dimensão mundial e é a sexta língua em número de falantes.
Era bom que, com a assunção pelo Governo português de uma política da língua, se conseguisse que esta, bem como as políticas culturais, deixassem de ser dominadas por uma certa elite que parece ainda não ter ultrapassado o complexo de rejeição e de inferioridade causado pelo abandono do país por D. João VI aos ocupantes franceses, indo para o Brasil, que passou a ser sede de Império. Ou seja, era bom que se deixasse de olhar para o Brasil com despeito e se percebesse e aceitasse a magnificência cultural daquele país e a grandeza que é o português ser falado naquela imensidão de terra e de gente. Era bom que se percebesse que Machado de Assis não fica atrás de Eça de Queiroz, que Padre António Vieira existiu porque viveu a dinâmica global da sua época nos dois territórios, que se Mia Couto inovou porque enriqueceu o português com a vivência da língua em Moçambique, antes, no Brasil, existiu Guimarães Rosa.
Era bom que quem se acha dono da língua percebesse que as línguas vivas vivem dos seus falantes. Caso contrário, morrem. É por isso que a capacidade de fazer uma reforma ortográfica comum a todos os países lusófonos, como o recente acordo ortográfico, é uma prova de vida e de vitalidade. É por isso que é ridículo dizer que a pronúncia do português que tem que ser regra no ensino e na política da língua no mundo é o português de Portugal. Porquê? Pelos 800 anos de história? E já agora o português de qual Portugal? De Lisboa? De Beja? De Castelo de Vide? De Coimbra? Do Porto? De Chaves? De Lagos? De Câmara de Lobos? De São Miguel?
É que a arrogância de proprietários da língua que muitos intelectuais portugueses assumem em relação ao Brasil dá vontade de lhes dizer que perante o elefante cultural, artístico e linguístico que o Brasil é, Portugal não passa de uma pulga.
in “Público”, 26 de Julho de 2008