«Nunca empregueis uma palavra nova, a não ser que ela tenha essas três qualidades: ser necessária, inteligível e sonora. Substituir uma palavra usual por outra palavra cujo único mérito é a novidade não é enriquecer a língua, mas aviltá-la».
Voltaire
As palavras são seres vivos que nos querem dizer coisas, exprimir sentimentos, transmitir força ou fraqueza e sobretudo emoções, afinal, tudo isso que se encontra nos seres humanos. Se soubermos vê-las por dentro, sentir-lhes a pulsação, chegaremos à alma de cada uma. Elas são mais vivas que qualquer coisa viva do reino vegetal – tal a sua influência no rumo da vida e, afinal de contas, no destino de tudo, de todos nós. Saberíamos sobreviver sem o ornitorrinco, até mesmo sem o eucalipto, mas o que seria da gente sem a palavra?
E se a palavra vive é porque ela nasce e percorre um ciclo temporal de vida, desde que é um novato neologismo (está jóia... bué disto e daquilo... uma baita de um negócio, etc.) até que cai na decadência da velhice, como um traje que hoje é moda e um dia cai em desuso – são as palavras obsoletas.
Por fim é abandonada como algo inútil, morre e permanece fossilizada na memória dos dicionários. Das muitas possíveis, puxo uma: alguém sabe o que é um carrejão? Aposto que não, mas ela lá está entre os fósseis.
Em Borges/Sabato – Diálogos (obra admirável, cachoeira de palavras) lê-se: «O advérbio morreu». E estremeço como sempre faço diante da morte. Já ninguém “mente”, já ninguém usa o “mente”. Trabalhar “arduamente” é coisa que já ninguém faz... e por isso as coisas estão como estão. Agora diz-se “trabalhar árduo”. E pronto, cortou-se um braço à palavra e com isso reduz-se o tempo de a escrever, o esforço de a dizer. Arduamente trabalhava-se antigamente...para quê então manter viva a palavra? Na sua forma adverbial é um vocábulo em agonia, mortalmente ferida.
No português falado em Portugal – no português arcaico, radicado, portanto, na pureza do greco-latino, eu digo a quem amo: Amo-te!
Mário de Andrade, o grande Mário de Andrade, ele próprio obreiro de uma nova forma de usar a língua portuguesa (já inadequada ou envelhecida no seu tempo) proclamava com orgulho e paixão, que preferia morrer a escrever o pronome depois do verbo. Direi sempre (dizia ele): Te amo!
Concordemos que se trata de uma alteração gramatical praticada por alguém que conhecia como poucos o peso ou a leveza das palavras. Que nos resta para refutar a sua tendência para a subversão sintáctica? Poeta que era, e dos grandes, Mário de Andrade ouvia-se a dizer ao ouvido da sua amada: Eu te amo, minha flor – e a frase soava-lhe, estou certo disso, a poesia pura, com o suave aroma do amor..
Declarar o amor a alguém, dizendo – gramaticalmente correcto Amo-te! – era como se lhe jogasse uma pedrada no ouvido, som duro esse, que toma o pronome depois do verbo.
Também a “concordância” é folha morta na gramática oficial(mente) adoptada no Brasil. Tanto no sujeito com o predicado, como no artigo com o substantivo.
Concordar com alguém simplifica quase tudo na vida e talvez seja a chave de ouro capaz de abrir o cofre onde os homens sequestraram a paz mundial. Mas em gramática e na construção das frases não dá certo, pois não parece de bom tom que o substantivo, que se quer no singular se submeta ao artigo no plural. E assim se diz, nas calmas, sem que os parentes caiam na lama: As broca custaram dez pila – estou certo ou estou errado? E também não tem jeito que o sujeito ande a reboque do predicado – não me refiro aos valores morais, às virtudes capitais, pois com esses cabe ao sujeito decidir se deverá ou não concordar, mas ao predicado (forma verbal numa oração). E aí, onde está o juiz que condene o sujeito apanhado num flagrante de discordância? Nas escolas, nos livros de autores consagrados (alguns, Académicos da mais fina água), nos jornais, formadores de opinião, nas conversas de rua – quero eu dizer, do doutor ao pé-de-chinelo, diz-se, sem que os dentes trinquem a língua: Eles tem mais que fazer do que pensar em gramática.
Também tudo se simplifica quando, cheio de ênfase (t’arrenego enfaticamente) se diz e escreve: Os dois não queria outra coisa... e ainda: Os carro da gente não vale mais o que valia dantes. É a morte do plural.
E com essas mortes sucessivas vai nascendo a nova língua brasileira. Saudemo-la de braços abertos. Parece confuso e impertinente? Talvez, mas admitamos tudo isso com a mesma tolerância com que suportamos a impertinência de uma criança que já quer falar mas ainda não sabe como fazê-lo.
Respigando ainda dos Diálogos, o argentino Sabato afirma a Jorge Luis Borges: Cada homem se arranja muito bem com a língua que mamou, e nessa língua pode criar uma grande literatura, a mais subtil do mundo.
Palavras providenciais, quase mágicas. Mas, atenção, vem aí o dia em que no Brasil já não se falará o português. Talvez uma outra língua, quem sabe, o brasileiro e até, sem cairmos em exageros, várias formas castiças de linguagem, tantos são os falares, obtusos de Estado para Estado, do Natal a Uruguaiana.
Ninguém perderá muito com isso... ou talvez só Portugal, tão pequeno ele é.
Hoje mesmo, ainda a defunta está viva, entrei num estabelecimento, perguntei por qualquer coisa, pedi uma informação, interessei-me por uns sapatos, e logo, quem está do outro lado do balcão me interpela com um “oi” interrogativo de quem não percebeu patavina do que lhe disse. Repito. Não entendi, respondeu-me o lojista. Esforço-me mais um pouco, abro as vogais, quase canto e então ouço um ah! salvador. Fez-se luz entre mim e o outro. Perdida a timidez, chega a pergunta: Você é italiano? Não, respondo secamente, quase ofendido. Então é argentino. Também não, volto a responder, e a fúria a crescer dentro de mim. Vem a informação, o remédio, a peça do carro, sei lá o quê. Percebi tudo o que o outro me disse e isso me deixou feliz. E por quê? Por me sentir mais inteligente ou mais aculturado que o outro? Não tanto assim. Muito mais por um sentimento de superioridade. Por falar um dialeto da língua portuguesa (até em Portugal existem vários) mais universal do que todos os outros que por aqui se falam. Sinto-me em casa, tanto no Brasil, como em Angola, Moçambique e por aí afora onde o português é o veículo de comunicação. Com o brasileiro comum isso já não acontece. Se esse brasileiro aterrasse em Luanda e se dirigisse ao primeiro bagageiro de terra que encontrasse, julgaria ter aterrado em Marte ou coisa semelhante. Vocês duvidam disso? Pena que duvidem! Eu não, mas sei, de fonte segura, que o mesmo brasileiro comum, chegado a Portugal, para aí se fixar e arranjar o trabalho que na sua terra lhe foi negado, irá entender tudo quanto os indígenas de lá lhe disserem. E sabem por quê? Porque a necessidade aguça o engenho. Em terra estranha é preciso abrir bem as orelhas e afinar os neurónios – não lhe vá o emprego que se almeja se ir por água abaixo.
Acreditem, a língua que falamos não tem culpa de nada. As pessoas que a usam, sim. Talvez por isso ainda acredite que a Língua Portuguesa ( que ultrapassou as fronteiras de Portugal e deixou de ser seu exclusivo património) possa continuar a ser, por muitos e bons anos, a quinta língua mais falada no mundo.
Oi! Você aí, entendeu o que eu disse? Não? Então prometo falar mais alto da próxima vez.