O português falado pelo presidente do Brasil levanta debate sobre a influência da oralidade no idioma culto e no ensino de gramática nas escolas
Na última campanha eleitoral, parece que nenhum candidato criticou outro pela indigência formal do discurso ou por supostos erros gramaticais, embora tivesse havido abundantes escorregões nas falas de improviso de todos eles. Escorregões em relação à língua culta, claro. Nas gravações dos programas eleitorais, no entanto, havia equipes filtrando bobagens agudas. Mas nos debates brotaram "enganos" freqüentes. Não houve quem não escorregasse de vez em quando.
A maioria dos olhares e ouvidos, no entanto, estava voltada para Lula. Ele até que se saiu bem, embora às vezes devorasse o "s" de um ou outro plural ou escorregasse na concordância de algum verbo que aparecia antes do sujeito. Ou pluralizasse verbos indevidamente ("Haviam problemas sérios."). Todos os outros candidatos, aliás (como todos nós), cometeram as mesmas distrações.
Lula não repetiu coisas obscenas como as registradas em sua primeira candidatura à presidência, em l989. Nunca mais se e ouviu dele um só "menas" e raras vezes os antes freqüentes "acho de que", "penso de que", "acredito de que". Nem se ouviu mais o desastroso "perca" - forma verbal usada em lugar do substantivo "perda" - pronunciado no debate com aquele senhor de olhos esbugalhados, eleito presidente e expulso de Brasília por pilantragens variadas. Nunca mais Lula sofreu "percas".
Na última campanha, demonstrou ter aprendido muito. E não só na forma de expressar-se, mas também no tom contido e no domínio dos assuntos. Não se sabe se leu muito ou se usou sua aparentemente excepcional capacidade de aprender de ouvido. Não importa. Uma coisa desagradável em sua fala ele não perdeu: o timbre rascante da voz agreste, apenas suavizado pelo sorriso freqüente e pela amabilidade que, pelo menos até as primeiras semanas do governo, parecem ter aumentado sua popularidade.
As poucas críticas públicas ao suposto despreparo de Lula para governar se concentraram no fato de ele não ter aproveitado seu tempo de candidato para estudar formalmente. Por temor de que críticas diretas se voltassem contra os próprios críticos, só nos corredores da vida e pela Internet seus adversários, sempre anônimos, faziam comentários jocosos sobre o "despreparo" dele e divulgavam graçolas que representariam sua ignorância, principalmente idiomática.
Mas, enfim, o companheiro Lula se expressa bem ou mal? Agora fala corretamente? Erra muito? Não, não erra muito. Mesmo sob a ótica conservadora da norma culta do idioma, Lula vai bem. Não tem o discurso melífluo de FHC, que se expressa tão bem que levou grande número de pessoas a acreditar ter ele feito bom governo, embora tivesse levado a nação à ruína com a inestimável ajuda do doutor Malan.
Sim. Lula não tem o discurso refinado e sinuoso de um ou outro acadêmico. Não fala espanhol, francês ou inglês. Lula também não fala em frases longas, virguladas e quase sempre irrepreensíveis do ponto de vista formal, como o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer. E como falava o mui falecido Roberto Campos!
De fato, Lula fala a língua do povo, mas muito melhor do que a maioria do povo. Ele ultrapassa de longe a gramática baixa e elementar dominada intuitivamente por qualquer falante, mesmo os sem instrução. De todo modo, sua fala não é propriamente exemplar.
É preciso considerar, no entanto, que o mais importante na fala, no discurso, na escrita, é a clareza. E nisso Lula é bom de fato. Comunica-se com clareza e fluência. Já era competente no tempo da ditadura, quando presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. E melhorou muito desde que deu a este escriba uma longa entrevista para Playboy, publicada em julho de 1979. Foram três dias de conversa, em maio. Às vezes mais descontraída por alguns poucos goles de ótima cachaça com cambuci. No primeiro dia da conversa, chamou a mulher, Marisa, e a surpreendeu com o aviso de que ia posar nu para a Playboy. Ela se assustou, perguntou se ele estava louco. "Vão dizer que você virou um bunda mole." Mas logo o percebeu a brincadeira.
Estava afastado da presidência do sindicato pelos militares e já articulava a formação do PT com políticos, sindicalistas e intelectuais de esquerda, entre eles Antonio Candido e Fernando Henrique Cardoso - FHC era de esquerda! -, que apoiou na candidatura ao Senado. Ágil nas respostas, Lula costumava, entretanto, papar mais "s" e atropelar regências e concordâncias.
Evoluiu enormemente. Como? Muita conversa, o atentíssimo ouvido excepcional para aprender, a companhia ilustrada de pessoas como Frei Betto, algum polimento, mais experiência e assessoria eficiente.
Melhoraria se estudasse mais, se conseguisse ler bons autores para dominar melhor as estruturas da língua que se internalizam automaticamente pela leitura. Bastaria uma hora por dia de leitura de um destes senhores: Graciliano Ramos, João Ubaldo Ribeiro, Luis Fernando Veríssimo e Millôr Fernandes, por exemplo - receita para todos. E uma hora de leitura antes de cada churrasco e de cada rabada com polenta.
Seria bom também que Lula, Palocci, Vicentinho e os outros ceceadores do PT tratassem desse pequeno problema lingual com a ajuda de fonoaudiólogos. A menos que o curtam como marca registrada. (Cecear é pronunciar as consoantes sibilantes surdas e sonoras - "s" e "z" - como interdentais, com a ponta da língua entre os dentes, lembra o Dicionário Houaiss.) Lula aproveitaria ainda para domar a aspereza da voz. Nada de importante.
O exemplar e o exemplo - Lula pouco estudou formalmente, mas, como milhares de outras pessoas em situação semelhante, "subiu" na vida. E subiu, todos viram, à custa de persistência, de algum carisma, de certa capacidade inata de liderança e de muita conversa. Bastou a língua que ele sabe, portanto.
Serviria o presidente Lula como exemplo para que jovens deixem de estudar? Pensarão eles que se Lula chegou aonde chegou como chegou - para que estudar? Não há nenhuma evidência disso. Assim como não há sinais de que os vários diplomas de FHC tenham levado alguém a estudar mais, não parece haver razão para que a falta de diplomas de Lula desestimule alguém ao estudo.
A propósito de estudo, ascensão e língua, em encontro na Livraria Garnier, no Rio, Machado de Assis (1839-1908) contou ao também escritor Medeiros e Albuquerque (1867-1934) ter-se surpreendido com a própria ignorância sobre a língua em que escrevia como ninguém: ao examinar a gramática de um sobrinho estudante, pouco entendera dela.
Machado estava sendo irônico e nisso não há novidade. Talvez não conhecesse de fato grande coisa da nomenclatura da gramática artificial, mas conhecia como poucos a língua e a gramática natural, que os gramáticos sempre tentaram aprisionar em livros, com pouco sucesso.
Se fosse preciso provar algo, Machado, garoto pobre que freqüentou apenas escolas irregulares do curso primário, perto do morro, onde vivia no Rio, é mais uma prova de que língua se aprende, ou melhor, se desenvolve lendo e escrevendo, isto é, fazendo uso dela, de preferência com bons padrões como modelo e estímulo. É provável que tenha lido por conta própria a Gramática Filosófica, de Soares Barbosa, de 1822, muito evoluída para a época; aproximava-se em alguns pontos de ideais e métodos de investigação lingüística da moderna gramática gerativo-transformacional e teve edições sucessivas.
Em seu autodidatismo de lastro tradicional, Machado leu por certo a Epitome da Grammática Portugueza, na introdução do bom dicionário de Moraes Silva, de 1813. O Moraes Silva estava longe, é óbvio, da metodologia, dos recursos e da sofisticação de um dicionário como o Houaiss. Ou o Aurélio. Mas era muito bom para a época e foi o modelo de gerações.
É claro que não foi por ter examinado dicionários e uma ou outra gramática, no entanto, que Machado aprendeu - e como! - sua língua, além de francês e inglês. Por ser um talento raro e por ler muito, chegou ao ápice, apesar da falta da escola formal, num século, o XIX, em que o ensino do português era baseado em clássicos, alguns bem menos distantes dele.
Atualmente, alguns lingüistas nervosos dizem que os defensores do ensino tradicional do idioma teimam em valorizar a gramática normativa, com seu apego aos clássicos e suas falhas e irrealidades, porque querem manter a língua como instrumento de controle social das classes dominantes. Essas "classes dominantes", nunca bem definidas, provavelmente querem impedir que algum representante das classes menos favorecidas chegue ao poder. Algum ex-operário, talvez. Pior, ceceador e sem um dos dedos mindinhos.
Terminologia - O problema é que tais lingüistas parecem ter transformado o formidável instrumento que é a lingüística moderna, fundamental para o estudo científico da língua, num fim em si mesmo. Como? Substituindo parte da cabeluda e deficiente nomenclatura da gramática tradicional por uma emaranhada terminologia lingüística.
As faculdades que tentavam formar gramáticos, em vez de bons professores de língua, agora tentam formar lingüistas. Pelo jeito, tão inaptos para ser guias de orientação idiomática como os anteriores, da velha e desgastada guarda, que mantém Vieira e Camilo no altar principal.
A sobrecarga de informações teóricas e nomenclaturas lingüisticescas parece ter contribuído para assombrar ainda mais os estudantes. E tome nomenclatura: codificar, encodizar, decodificar, decodizar, diacronia, entropia, langue, paradigma, parole, ruído, significado, significante, sincronia, sintagma e por aí vai. E tome divisão dividida em subdivisões subdivididas em mais subdivisões com remissões infindáveis, levando a mais remissões, que conduzem a mais remissões subdivididas em outras tantas remissões classificadas por números ou letras.
Qual foi o resultado? Os conhecimentos rasos da gramática tradicional de cambulhada com pitadas mal-digeridas de lingüística, de semiótica e de teoria da comunicação resultou num formidável caos teórico, capaz de confundir o professor comum - a maioria - e afugentar para sempre os estudantes vitimados pela receita indigesta. É como se tivessem de encarar na mesma refeição uma rabada com polenta, preferência de Lula, e uma boa buchada de bode, preferência de FHC, depois de três doses de cachaça com cambuci.
Numa coisa os estudiosos modernos da língua têm razão: o professor tradicional jamais considerou o fato - porque o ignorava - de que a língua se constrói de dentro para fora, e não o oposto, pois a capacidade de linguagem é dom da espécie humana. Jamais considerou que para desenvolver os conhecimentos de uma língua é necessário estimular o dom lingüístico normal, inato.
Claro que não se pode generalizar, porque havia ótimos professores antes, capazes de aulas criativas, livres das teorias então em vigor, como os há agora, diria Machado de Assis. Mas a maioria, antes como agora, não consegue - nem tenta - estimular da melhor maneira possível o estudo da língua. Não consegue levar em conta que o falante já a conhece e que precisa apenas desenvolver suas potencialidades inatas de forma lúdica e agradável, sem ser travado por teias de regras artificiais, exceções, nomes, classificações e subclassificações analíticas eriçadas.
Todo falante sabe instintivamente sua língua e só precisa ser ajudado a desenvolver-se nela por meio da prática e de exercícios agradáveis. Exercícios que o estimulem a gostar da língua que já nasce apto a saber, sem saber como nem por quê. Está "programado" biologicamente para isso, aponta a língüística, com Noam Chomsky à frente.
O que crianças e jovens precisam é ser orientados a falar com clareza e desenvoltura e a escrever com desembaraço - princípios em que continua penando a maioria das pessoas que saiu da universidade, seja de que curso for. Essa maioria em geral acha que "o português é a língua mais difícil do mundo". Um preconceito gerado pelo "ensino" deficiente.
Os que falam e escrevem bem costumam ser exceções, talentos especiais, alguns excepcionais, forjados pela leitura - como Machado de Assis e Graciliano Ramos -, provavelmente não por influência da escola. Talvez, até, apesar do ensino pedregoso que enfrentaram.
Que variedade idiomática realçar na escola? As regionais? A do Vale do Jequitinhonha? Pouca gente duvida da necessidade de priorizar a norma culta. É a variedade utilizada na redação de livros didáticos e expositivos, de jornais, revistas e livros de divulgação, nos concursos oficiais. É a língua oficial, enfim, a mais importante do ponto de vista educativo e cultural. É nela que se expressam as principais manifestações culturais. Os falantes aprendem as variantes regionais e coloquiais em casa, na rua, no botequim, em contato com os integrantes da comunidade.
O que o ensino oficial não pode é ignorar tais registros, sob pena de flutuar na irrealidade. E jamais hostilizar o falante de nível social, cultural e econômico mais baixo; ele apenas não pôde desenvolver suas potencialidades lingüísticas e por isso fala "errado" - agramaticalmente, diria Chomsky -, em relação à variedade culta, às vezes exacerbada por velhos modelos lusitanos. Nem por isso tais modelos, valiosos, devem ser esquecidos ou desvalorizados, já que são os pais da língua. Mas a atenção disciplinar às variedades não-cultas deve ser dada nos cursos adequados.
O estudante não pode ser sobrecarregado com regras artificiais tenebrosas, que antigos estudiosos não sabiam ser inferidas da gramática natural, inata. Nada da mortificante análise sintática pormenorizada de textos de Camões e de Vieira, com que tal ensino aterroriza o jovem estudante e o afasta de autores seminais como esses. Nada de dissecar um corpo sem antes tê-lo conhecido com vida e assim ser impedido de gostar do texto sem ter tempo de entendê-lo. Cada coisa a seu tempo, no meio e no lugar adequados.
"Num ensino moderno, a gramática natural da fala deve sempre preceder, fundamentar, controlar a gramática artificial da escrita", é a boa lembrança de Celso Pedro Luft em Língua e Liberdade (Editora Ática).
O que a escola pode e deve fazer é deixar de lado o ensino gramaticalista, repleto de nomes raros ou engraçados como o gracioso "futuro do pretérito". Por que não um ainda mais belo "porvir do transato"? Antigamente era o simples "condicional". Como no inglês e no francês, por exemplo. "Pretérito"... Coisa fina.
Pouco importa. A escola deve ensinar a língua com base na fala e no texto vivos, no estudo descontraído da escritura, na razão do uso de tal ou qual expressão, na procura de bons sinônimos, na brincadeira com a palavra, na paráfrase (reescritura de um texto com outras palavras).
Língua se aprende, se desentranha, se desenvolve com prazer. Muito prazer.