Neologismos de TV
As Televisões atiram-nos, com toda a naturalidade, umas palavras arrevesadas, feiíssimas, a substituir outras simples, limpas, enraizadíssimas na linguagem de todos os dias. Exemplo: numa reportagem do Telejornal da RTP, sobre uma manifestação de bombeiros que reivindicavam mais meios emitida há tempos, dizia-se isto: "As críticas são todas direccionadas ao presidente da Câmara de Lisboa." Porque é que as críticas hão-de ser direccionadas e não simplesmente dirigidas ao presidente da Câmara? Corri aos dicionários, a vasculhar: os 12 volumes editados pela Sociedade da Língua Portuguesa não incluem o direccionar; o mais recente dicionário da Academia das Ciências, nos seus únicos e condensados 2 volumes, esse sim, já inclui. Desanimado, telefonei ao meu amigo Francisco Belard, sempre mais atento a estas questões. Ele deu-me este conselho: "Não ligues a esse dicionário; diz na mesma o que pensas."
Penso mal. Antigamente, como recordei com Belard, a língua tinha a sua lenta evolução, enraizada em inovações ponderadas por escritores cultos, ou em mudanças cimentadas no falar do povo anónimo. Agora, qualquer asneira dita e repetida na Televisão torna-se regra - ainda por cima rapidamente adoptada pelo Dicionário da Academia das Ciências.
O horror de recepcionar
Outra palavra abençoada pelos meios de comunicação mais modernos, e aparentemente vulgarizada a partir das telenovelas brasileiras: recepcionar. Ainda recentemente, num estabelecimento comercial, um empregado me perguntava, impávido, se eu não tinha recepcionado em casa uma carta que me mandaram. Eu expliquei que não tinha recebido a carta, sublinhando muito o verbo receber. Ele fez um ar admirado, mas indiferente ao meu sublinhar, e insistiu: "De certeza que não a recepcionou? Mas enviamos-lha!"
Nos dicionários clássicos portugueses, admitia-se o recepcionar, em relação a recepção: por exemplo, organizar uma recepção pública a uma figura política.E assim a palavra era usada, mais no Brasil, do que em Portugal.Mas agora não: exigem-nos simplesmente que passemos a "recepcionar" tudo, em vez de apenas "recebermos" as coisas, como antigamente.
Problema internacional
Embora isso não nos conforte, constato que o problema não é tipicamente português. Uma crónica recente de Umberto Eco, publicada no "Diário de Notícias", lamentava não apenas esta criação incontrolada de neologismos da comunicação social (ele apontava a utilização, em determinado meio italiano, da expressão "notícia impactada", em vez de notícia de impacto), mas também o uso excessivo de palavras estrangeiras. Aí está uma moda que faz certos elementos mais inseguros das nossas classes médias sentirem-se possuidores de uma certa cultura cosmopolita: utilizarem muitas palavras estrangeiras.
A este propósito, Eco dizia: "O melhor exemplo é 'pole position', que pode facilmente ser traduzido por em primeiro lugar ou em posição vantajosa. E apontava outro inconveniente da utilização destes estrangeirismos, quando uma pronúncia mais precipitada altera os significados:
"Muitas vezes, na voz de vários locutores, 'pole position' transforma-se em 'pool position', que não tem nada a ver com primeiro lugar, mas sim com uma posição na piscina."
Reportar a situação
Decidi "reportar esta situação", esperando vir a ter algum efeito positivo sobre os responsáveis pela dita situação. Aí está outra situação,que de tão banalizada já ninguém repara, mas que não deixa de me arranhar os ouvidos: o emprego da palavra situação a torto e a direito, com o significado de simples acontecimento ou, em linguagem mais burocrática, de qualquer ocorrência. Antes, situação referia-se a sítio, a situar, ou até ao estado de um indivíduo e de um país - e só muito possidónia e excepcionalmente a um facto ou ocorrência que fosse necessário reportar.
No antigo regime, situação era o nome com que se designava o próprio regime, chamando-se reviralho aos seus opositores. Mas não eram coisas que se reportassem, como se reporta hoje qualquer situação. Existiam simplesmente, e o que se reportava era algum acontecimento (ou ocorrência, numa linguagem mais formal e burocrática) relacionado com a situação ou o reviralho.
Deslocalizar o vocabulário
Estamos a assistir a uma verdadeira deslocalização do nosso vocabulário - ou seja, a uma alteração substancial da localização dos vocábulos. Ora aí temos uma palavra inteiramente nova, bastante desengraçada, mas utilíssima e completamente justificada: deslocalização. Começou recentemente a ser utilizada em todo o Mundo, nos vários idiomas, para exprimir um conceito novo, que é alteração da localização das empresas, com o objectivo de conseguirem melhores condições económicas (tendo em conta aspectos de custos fiscais, salariais e de matérias-primas). Não é só a palavra que é desengraçada; o próprio conceito, na sua cegueira social, e na sua avidez lucrativa, é também bastante feio. Mas reconheçamos a vantagem de vermos um conceito, assim novo, ser designado com uma palavra escorreitamente portuguesa.
Revisor de estilo
No seu artigo acima citado, Umberto Eco pede que um revisor de estilo seja incluído em todas as redacções, a zelar pela linguagem usada. A mim parecer-me-ia igualmente boa ideia as Televisões, por seu livre alvedrio, criarem uma comissão de contenção de criação de novas palavras, encarregada ainda da elaboração de um código de estilo genérico.
Proponho o Belard para presidente. Sendo claro que as Televisões substituem agora os escritores e o povo na criação de vocábulos, devem assumir consciente e responsavelmente esse papel. Um incentivozinho à leitura dos clássicos poderia também melhorar a alfabetização dos jornalistas televisivos - com benefício de todos nós. E se querem mesmo palavras complicadas, leiam por exemplo o Aquilino - de quem tirarão sempre muito proveito, para além de alargarem o vocabulário.
In "Actual", revista do "Expresso" do dia 23/08/2003