No Verão de 1982 eu chefiava a equipa da Cruz Vermelha de Angola (CVA) encarregada da operação de socorros às populações deslocadas pela guerra no planalto central de Angola. Nessa qualidade, integrei-me no trabalho do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que actua nas regiões em guerra.
A nossa zona de intervenção era o Huambo e o Bié, área perigosíssima de guerra, com quase toda a sua extensão proibida à circulação do Governo. Já anteriormente eu estivera no Sul (Huíla e Cunene), na altura da invasão sul-africana, levando socorros aos deslocados de Ondjiva (ex-Pereira d'Eça), que fugiram para a Cahama, Chibia e Chiange.
Obtida a autorização governamental e prontos os Toyota todo-o-terreno blindados por baixo, viajámos pela deserta estrada que liga as cidades do Huambo e do Cuíto (Bié), passando pelo Chinguar: uma via completamente minada, onde a fronteira entre a vida e a morte era muito ténue.
Chegados ao Cuíto, depois de uma bebida tónica de milho fervido, obtivemos permissão do comissário provincial, o velho Jamba-ia-Mina, para ir para sul, uma zona proibida ao Governo. A viagem era por nossa conta e risco, o Governo não nos garantia qualquer espécie de segurança. As grandes bandeiras do CICV, com a cruz vermelha bem visível, continuaram, pois, içadas nos Toyotas, para convencermos a UNITA de que não éramos do MPLA. Tanto os Toyotas como nós tivemos de suportar grandes balanços e saltos numa «estrada» de areia e capim onde desde há pelo menos sete anos nenhum veículo circulava. O nosso objectivo era uma aldeia chamada Chicala, sessenta quilómetros a sul da capital, que passava a ser o ponto mais avançado das operações humanitárias da Cruz Vermelha. O Cuando Cubango ficava a 150 quilómetros para sul. Íamos avaliar a situação de fome e carência, e por isso ainda não levávamos socorros, pois tudo era desconhecido. Lá chegados, fomos recebidos por uma população triste que nos cercou, convencida de que lhe levávamos comida. Desiludidos por só irmos fazer uma avaliação da situação, explicaram-nos que estavam isolados do mundo exterior há muitos anos, que nunca mais tinham visto sal nem açúcar. As crianças tinham as barrigas inchadas, os olhos salientes e as pernas e braços reduzidos a ossos. Fiquei emocionado. A pele das pessoas estava esbranquiçada e coberta com uma espécie de escamas. Os cabelos eram ruços. Sintomas de fome extrema. «Estamos todos a morrer, nunca mais comemos», diziam em uníssono.
Comovido e amargurado por haver populações no meu país forçadas a tal desespero, não percebi logo um pormenor, de que me dei conta já à tardinha, na viagem de regresso.
Aquele povo, abandonado pelos portugueses e isolado do mundo há quase dez anos, sem escola, sem vida cultural, enterrando diariamente dezenas de mortos de fome e doença, tinha conservado a língua portuguesa como seu património e foi nessa língua que se dirigiu a nós, forasteiros. E nela se exprimiam tanto velhos como jovens e crianças. Isto é, os pais passaram a língua portuguesa para os filhos, afinal como acontece em qualquer aldeia de Portugal.
Aprendi algo naquele dia doloroso: aquela gente, que não existia no mapa, que não contava para nada, que ia desfalecendo e morrendo todos os dias, era a verdadeira defensora da língua portuguesa, porque, numa situação-limite, extinguindo-se, não deixou morrer essa língua que assumira como sua.
Já antes, pelos caminhos da guerra do centro e do sul angolanos, eu tinha ouvido populações sofridas expressar-se em bom português. Casos houve, até, em que pessoas jovens, em povoações isoladas ou em acampamentos de deslocados pela guerra, nos saudavam num português já quase esquecido em Portugal: «Bom dia, como estais?»
São esses, penso, os verdadeiros heróis da língua portuguesa. Recordo-os para os homenagear e para lhes agradecer a coragem.