Agustina Bessa-Luís referiu recentemente que, na sua escrita, os erros acontecem e que os mesmos se repetem, algumas vezes. Revelou também que o seu primeiro e atento revisor é o marido. «É como se fosse um regresso à infância», disse-me depois ao telefone. «Como se tivesse o mestre-escola ao meu lado.» E recordou as pautas dos grandes músicos, muito riscadas, ou os manuscritos dos escritores. Errar é humano.
Mas estes erros não aparecem (não deveriam aparecer...) ao público, pois os editores acrescentam outros revisores aos que cada um tem perto de si. Os jornais também têm os seus mecanismos de controlo das gralhas e dos erros. Um leitor de Penafiel, professor, Alfredo de Sousa, enviou uma carta sobre uma das crónicas anteriores intitulada “Ainda a legibilidade da escrita”. Diz o leitor: «(...) a legibilidade dos jornais não se pode colocar apenas no “arrevesado” da linguagem, pelo contrário, sou dos que advogo que se deve escrever correctamente o português de forma a aproximar o jornalismo da literatura, utilizando as mesmas figuras de estilo ao dispor de quem escreve e, sobretudo, de quem esmera a escrita. Não é por aí que o gato vai às filhós, mas já pode ir se num texto jornalístico, por exemplo se derem erros ortográficos crassos que são, inegavelmente, mais prejudiciais que um texto jornalístico/literário. (...)» E mais à frente: « Escrever bagatelas “legíveis” não é bom jornalismo nem é boa literatura. De resto, pode escrever-se bem e legivelmente, o que não significa transigir com o uso correcto da norma da língua.» O leitor refere-se depois a erros encontrados num outro jornal de referência.
Os erros de ortografia não têm sido queixa dos leitores. Não deixa mesmo de ser sintomática esta carta. Para ilustrar a sua tese, o leitor não se refere a casos concretos deste jornal. Não quer dizer que estes não existam no DN, como noutros órgãos de imprensa. E que não venham a acontecer, apesar de todas as cautelas, em cada nova edição. O seu controlo é porém vital, pois a sua maior ou menor frequência funciona como um factor de credibilidade. O que fazem os jornais para os evitar?
Sem resposta aos esclarecimentos que solicitei posso, mesmo assim, traçar um breve retrato de alguns procedimentos adoptados. Há anos o DN tinha revisores qualificados que verificavam a correcção dos textos. Esse corpo de especialistas que olhavam minuciosamente as palavras foi progressivamente esvaziado. Em determinada altura, considerou-se que os jornalistas teriam eles próprios essas responsabilidade, pois sendo hoje na maioria possuidores de formação universitária teriam a obrigação de saber escrever correctamente. A tarefa passou também para os editores que, em cada secção, assumem a responsabilidade dos textos, na sua legibilidade, como na sua correcção.
O fecho de edição, nas horas que antecedem a conclusão do jornal, vê tudo o que pode ser visto sobretudo na capa, nos títulos, nas aberturas, nos “leads”, nos destaques e nas legendas, acontecendo mesmo a revisão tradicional de textos, quando há tempo para isso. As páginas também são vistas “em espelho”, como se o jornal estivesse a ser folheado, para impedir, por exemplo, repetições vocabulares demasiado evidentes. É o fecho de edição que, para além dos directores e do editor executivo (chefe de redacção em terminologia mais antiga) tem uma visão global do jornal que sairá no dia seguinte, podendo assim, à última hora, corrigir alguns erros. Os meus próprios textos tiveram, aqui e além, uma intervenção do fecho e algumas vezes dos editores, levando a correcções justificadas.
Uma nova figura surgiu, entre nós, na década de 90, pois nos EUA os “copy desk” já existiam há muito. Trata-se de uma intervenção que visa não só zelar pela correcção formal, mas também pela correcção do texto, para que este seja claro, objectivo e sem erros. Essa função exige, por vezes, alguma reescrita nos textos originais por forma a adequá-los ao estilo de cada publicação. Nos últimos anos, a correcção e melhoria dos textos reequacionou-se com a revolução introduzida pelos computadores nas redacções. Existem hoje aplicações que incluem correctores ortográficos e gramaticais, dicionários de sinónimos e temáticos, hifenizadores, etc. Em Portugal o Ciberdúvidas (http://ciberduvidas.sapo.pt/, ver Bloco Notas, a seguir) é um apoio em linha, já com muitas respostas em arquivo. Estão também acessíveis enciclopédias que permitem, a quem escreve, confirmar factos, esclarecer origens de etimologias. E os dicionários tradicionais podem ajudar os mais (ciber) cépticos ou aqueles que manipulam melhor as versões em papel. Acabar-se-ão por isso os erros? Evidentemente que não.
Os correctores não são todos iguais e não resolvem tudo. Uma frase escrita do fim para o princípio, fica ininteligível, mas não é considerada errada pelos correctores. A pontuação, que pode mudar o sentido ao que está escrito, não é reconhecível. Uma palavra certa no sítio errado também não. Só a intervenção qualificada do jornalista pode resolver esses deslizes das máquinas. E nem sempre a pressão de escrita na última hora deixa a cabeça fria para as correcções rigorosas.
Errar é humano. Também é humano reconhecer o erro e corrigi-lo. Lutar por níveis de excelência, na escrita. Não esquecer a formação, a actualização, pois a língua evolui e a competências dos jornalistas precisa, como noutros domínios do saber, de acompanhar a evolução. E há a formação nas escolas, apetrechando, melhor ou pior, os profissionais do jornalismo.
A carta refere ainda a aproximação da escrita jornalística à escrita literária. Uma outra reflexão.
BLOCO NOTAS
José Mário Costa, responsável pedagógico da vertente rádio do centro de formação da Rádio e Televisão de Portugal (RTP) tem dedicado grande atenção aos problemas da Língua Portuguesa. É co-fundador e responsável editorial do Ciberdúvidas.
José Carlos Abrantes (JCA) – O que é o Ciberdúvidas ( http://ciberduvidas.sapo.pt/)?
José Mário Costa (JMC) – É um sítio na Internet totalmente dedicado à Língua Portuguesa. Assenta num consultório, como não há outro em todo o espaço da lusofonia – pela pluralidade e diversidade dos seus seus especialistas (portugueses, brasileiros e africanos, tanto da corrente normativa como da não-normativa), mas também pela sua actualização diária...
JCA – Mas o Ciberdúvidas não se esgota nas perguntas e respostas sobre a Língua Portuguesa...
JMC – Precisamente. Além do consultório, com acessos de todo o mundo onde se fala português, e não só, o Ciberdúvidas funciona à imagem de um jornal...sobre a nossa «língua de oito pátrias», como lhe chamou o saudoso João Carreira Bom, fundador, comigo, deste projecto de verdadeiro serviço público. Tem notícias, tem opinião, tem polémica, fala de livros e acolhe praticamente tudo o que vai saindo na imprensa à volta Língua Portuguesa. E há, ainda uma Antologia de textos de escritores lusófonos de todos os temposque escreveram, em prosa ou em poesia, sobre o nosso idioma comum.
JCA – Permanentemente em linha no Ciberdúvidas?
JMC – Permanentemente, e à mercê, só, de um “clique”... A Antologia, que será, seguramente a maior recolha jamais feita no género – com alguns textos, de autores contemporâneos, escritos especialmente para o Ciberdúvidas –, mas tudo o resto. Ao todo, nestes já oito anos que levamos, acumulámos mais de 15 mil de temas.
JCA – Que uso podem fazer os jornalistas desse sítio?
JMC – O mesmo que qualquer lusofalante, esteja onde ele estiver e como só a Internet o permite. O Ciberdúvidas cruza os mais diversificados públicos e fronteiras: das perguntas mais elementares, até às necessidades e preocupações mais elaboradas, como por exemplo, do núcleo de tradutores de português da União Europeia ou dos muitos Leitorados de Português existentes em universidades estrangeiras, de Espanha ao Japão; de profissionais tão diferentes como médicos, advogados, professores, jornalistas, informáticos e alunos dos mais diversos graus de ensino.
JCA – Mas no caso dos jornalistas...
JMC – No caso dos jornalistas, por maioria de razão, porque a Língua Portuguesa é o seu instrumento de trabalho e ai de quem não tenha dúvidas...
JCA – E como anda a formação dos jornalistas em Língua Portuguesa?
JMC – Deficientíssima. Começa por essa calamidade que é o ensino do Português no Básico e no Secundário, acabando, pura e simplesmente, na sua inexistência nas universidades e nas escolas que formam jornalistas. O resultado são os sistemáticos pontapés na gramática que se lêem e ouvem todos os dias nos jornais e no audiovisual. As redacções estão hoje inundadas de gente que, infelizmente, nem se apercebe do que isso representa de descrédito profissional. Para além do mal que esses erros e disparates, de tanto escritos e ditos, fazem à nossa língua.
in “Diário de Notícias”, de 21 de Março de 2005