Meus Amigos:
Enchi a vida de palavras, na tentativa de as perfilar com honra e na presunção de ser emissário de algumas verdades. Nunca as palavras, para mim, foram exercícios de futilidade, ou perversos jogos de ocultação. Também elas me ensinaram a vigiar o meu próprio arbítrio, e me levaram a compreender que a sua beleza interior, o significado oculto dos seus étimos constituíam o corpo do seu poder subversivo. Ainda hoje, com mais de cinquenta anos de ofício, entre tropeços, quedas e ascensões, assombros e desgostos, as palavras, e a força que destilam, continuam fascinar-me. Porque só elas me aproximam do homem, e da consciência da sua imperfeita grandeza. Porque só elas exigem que delas se sirvam aqueles cuja ética os impede de ser cúmplices da injustiça, da intolerância, da exploração, da ganância, da indiferença.
Não há páginas imaculadas nem palavras ingénuas. Tudo o que escrevemos corresponde a uma ideologia e visa um objectivo. Certamente escrevi textos injustos; mas textos moralmente condenáveis, creio que os não fiz. A minha obsessão pelas palavras justas nunca evitou que dissimulasse a pulsão dos meus sentimentos, nem que afastasse da prosa a análise das minhas indignações. Faço uma paráfrase de Brice Parain e digo: sinto-me responsável por um mundo que não construí nem desejei. Tola soberba, esta, de presumir que posso ser útil escrevendo a crítica da vida! Tola soberba, esta, de alimentar a ideia de que há quem encontre uma ração de esperança no modesto edifício verbal que tenho vindo a construir! Mas a tenacidade, pelo menos, nunca faltou onde, de certeza, o talento esteve ausente.
Permitam-me, no entanto, que faça entrar, neste almofariz, a amálgama do rigor e do afecto, da razão e do coração, afinal de contas a essência do desvelo. Nenhum escritor consegue definir o maravilhoso, nem descrever o inefável. Da mesma forma que nenhum jornalista é independente, imparcial e objectivo. Um e outro, quando honrados, quando honram as palavras, vão tentando. E é nessa aventura da pesquisa, nesse afã da criação e da invenção que os textos comparecem. Um alvoroço de metáforas, um bulício de analogias e um diálogo que se pede de empréstimo sem se submeter à servidão do mimetismo.
As palavras não são uma memória a fundo perdido. E, porque o não são, eis-nos aqui reunidos, na conivência entre uma empresa, a Vodafone, uma agremiação de recta pronúncia, a Sociedade de Língua Portuguesa, e um prémio denominado João Carreira Bom, cujo nome evoca o excelente cronista e me faz recordar o amigo querido. Os matizes da retórica permitem-me afirmar que tanto a Vodafone, como a Sociedade de Língua Portuguesa, o que João Carreira Bom fez, e eu próprio faço, nos concertamos nessa certeza de identidade que se designa de comunicação. Mas que se engrandece e se dignifica no compromisso com a liberdade. Este prémio é, também, um prémio à liberdade.
Direi, ainda, sem pretender ser paradoxal, que esta correlação faz-nos compreender que a esfera da cultura não é uma questão de estatística, e que a tecnologia moderna procede a previsões de cálculos e de riscos, talvez para selar um novo contrato moral, ético e estético. O patrocínio da Vodafone a este prémio, e a institucionalização que a Sociedade de Língua Portuguesa lhe dá, autorizam-me a admitir ser possível a integração de interesses sem se perder a garantia de independência. Por isso, mas não só por isso, agradeço à Vodafone, na pessoa do dr. António Carrapatoso; à prof.ª dr.ª Elsa Rodrigues dos Santos, presidente da Sociedade de Língua Portuguesa, e ao júri que, por unanimidade, me distinguiu. Um aceno especial ao Ciberdúvidas, mosqueteiro do idioma, que dá fé ao que o Padre António Vieira um dia disse: «Quando nasce uma língua nasce, também, aquilo que a salva e a assiste: ser falada por numerosos outros».
Meus Amigos:
Venho de um tempo onde muitos baralhavam a dignidade e outros, poucos, eram os insurgentes de uma contínua rebeldia. Queríamos dizer tudo, a memória dos outros acompanhava-nos, e as palavras eram o produto de todos os sangues. Dessa memória e dessa aventura me tenho socorrido para a composição do que escrevo, afinal a correspondência do meu desejo íntimo de recompor o mundo. Tudo mudou, a sociedade portuguesa é outra e incita-nos a encontrar e a utilizar soluções novas. Não se deve, porém, esquecer os intervenientes culturais, até para se recuperar a noção de humanidade, cujo sentido é absolutamente diferente do que se conhecia há trinta anos. Em que pondo estamos com o tempo? Quais as relações entre história, saber, avaliação, disciplina, espaço e palavra?
Tenho procurado, nos últimos anos, encontrar resposta para estas interrogações. Procuro-a nos livros, no que escrevo, no diálogo com os outros. Procuro-a nos antigos mestres, na Bíblia e em Marx, em Camilo e em Aquilino, em Cesário e em Carlos de Oliveira, em Emmanuel Mounier e em Walter Benjamin, impulsionado por essa circulação insana e fértil, absurda e inquietante que são os dias da nossa rapidez sem flores nem perfumes. Procuro nas palavras a palavra que produz os movimentos interiores e nos torna reféns de uma pequenina felicidade.
Procuro nas palavras o enigma das coisas comuns, a luminosidade que apazigua. Nelas e com elas procuro o que nos aproxima de todas as distâncias, o que torna perto todas as longitudes. As palavras que podem modificar destinos e atingir o sublime. As palavras, seres indomáveis que nenhuma tirania vez alguma aniquilou, que fazem dos homens seres de convergência e dos seus sonhos a grandeza da condição humana.
Muito obrigado.
Texto lido no anfiteatro da Vodafone, numa segunda-feira, 27 de Março de 2006, quando da entrega do Prémio de Crónica João Carreira Bom