Sociedade da Língua Portuguesa
[No] terceiro ano consecutivo da atribuição do Prémio da Crónica João Carreira Bom / SLP, que foi instituído por cinco anos, com o patrocínio da Empresa Vodafone, a Sociedade da Língua Portuguesa e o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa têm o imenso prazer e honra de o atribuir este ano a Armando Baptista-Bastos.
Quero uma vez mais agradecer ao Senhor Dr. António Carrapatoso, presidente do Conselho de Administração da Empresa Vodafone, o patrocínio a este Prémio, pela importância de que se reveste este acto cultural representando esta empresa que (...) dirige um exemplo de como o mundo dos negócios pode também estar ao serviço da cultura.
Quero ainda agradecer aos membros do Júri, nomeadamente à jornalista, Senhora D. Maria José Mauperrin, por, em boa hora, ter sido a mentora da criação deste prémio, em memória de seu marido, João Carreira Bom que tanto prestigiou a imprensa portuguesa, como ainda ao escritor Prof. Dr. Urbano Tavares Rodrigues, ao escritor e jornalista, Dr. Fernando Dacosta, como também ao jornalista Senhor José Gabriel Viegas, representante da Vodafone, e ao Dr. José Manuel Matias, vice-presidente da SLP, por se terem disponibilizado a pertencer ao júri, enriquecendo com o seu saber e experiência a realização deste evento, mas muito particularmente pelo afecto e respeito com que cada um se pronuncia sempre sobre tantos nomes susceptíveis de serem nomeados para este Prémio, dentro da panorâmica da crónica portuguesa.
Mas hoje estamos aqui para homenagear o jornalista Baptista-Bastos, a quem o júri decidiu, por unanimidade, atribuir-lhe este Prémio, pela sua longa carreira como escritor e como jornalista, recheada de prémios e de momentos altos, sendo considerado um dos maiores prosadores portugueses contemporâneos.
Baptista-Bastos iniciou-se com cerca de 18 anos no jornalismo n’ O Século, tendo trabalhado também no República, no Diário, no Europeu, no Diário Popular, e nas revistas Cartaz, Almanaque, Época, Sábado. Foi igualmente redactor em Lisboa da Agência France Press. Usando o pseudónimo de Manuel Trindade, trabalhou na RTP-Rádio e Televisão de Portugal, nos tempos do governo de Marcelo Caetano.
Foi despedido por ter sido considerado um adversário do regime. Porém, é no vespertino Diário Popular, em que trabalhou durante 23 anos (de 65-88), onde exerceu a sua actividade mais tempo e no qual desempenhou importantes funções. Foi docente da Universidade Independente, na qual leccionou a disciplina de Língua e Cultura Portuguesas.
Recebeu entre outros prémios:
Prémio Feira do Livro de 1966
Prémio Nacional de Reportagem / Prémio Gazeta de 1985, atribuído pelo Clube de Jornalistas
Prémio o Melhor Jornalista do Ano (1980 e 1983)
Prémio Porto de Lisboa de 1988
Prémio Pen Club de 1987 atribuído ao seu livro A Colina de Cristal
Prémio Cidade de Lisboa de 1987 atribuído a A Colina de Cristal
Prémio da Crítica 2002 atribuído ao romance No Interior da Tua Ausência
Grande Prémio da APE, em 2003, atribuído ao livro Lisboa Contada pelos dedos
Prémio Gazeta de Mérito atribuído por unanimidade, pelo Clube de Jornalistas
Algumas obras do autor:
No Ensaio:
O Cinema na Polémica do Tempo / 1959
O Filme e o Realismo, 1962
Na Ficção:
O Secreto Adeus
O Passo da Serpente
Cão Velho entre Flores
Viagem de um pai e de um filho pelas ruas da amargura
Elegia para um caixão vazio
A Colina de Cristal, 1987
Um Homem parado no Inverno
O Cavalo a Tinta-da-China
No interior da tua ausência, 2002
Entre 2000 e 2002 as Edições Asa publicaram 9 volumes de ficção do autor, sob o título de Biblioteca Baptista-Bastos.
Jornalismo:
As Palavras dos Outros
Cidade Diária
Capitão de Médio Curso
O Homem em Ponto
O nome das ruas ( em colaboração com António Borges Coelho)
José Saramago: aproximação a um retrato
Fado falado
Lisboa contada pelos dedos
Na televisão – Quem não se lembra das suas saborosas Conversas Secretas?
Actualmente publica as suas crónicas no Jornal de Negócios.
A abrir o livro Cão Velho entre Flores, na sua «Carta para um círculo de amigos», Baptista-Bastos declara: “O meu ofício é o de escrever histórias. Quero dizer: sou um vendedor de esperanças e um mercador de omissões”.
Esta frase naturalmente refere-se à sua ficção e às suas crónicas literárias, porque no que diz respeito aos artigos de opinião de natureza política e social, Baptista-Bastos usa de todo o rigor e da sua verdade.
Não entra em jogos de difamação, de mesquinhez, não armadilha.
Pelo contrário, assume com frontalidade tudo o que afirma, explicando, indo bem fundo às questões, sem achincalhar, mesmo quando aponta, com uma certa dureza, aquilo que ele considera de erros em alguém.
Usa, portanto, de um discurso frontal, honesto. E cito o artigo “Uma questão de cultura”, em que revela uma particular isenção.
Embora as suas preferências não fossem para o candidato a que se refere, no que diz respeito ao seu mandatário no Porto, o Dr. João Lobo Antunes, diz dele: “um homem decente e íntegro, informado, lido e aspergido por um espírito muito crítico revelado nos modos, na elegância das respostas, nas questões que nos propõe. Votaria nele sem hesitação. Como votaria noutro, da sua linhagem e nobreza. Por uma questão de cultura”.
Em muitas das suas crónicas faz o contraponto entre uma questão de cultura e uma questão de incultura, onde se situa a maior parte dos procedimentos político-éticos.
E é exactamente neste contraponto entre uma questão de cultura e uma questão de incultura que Baptista-Bastos lança os dardos do seu olhar crítico e dos seus critérios de aferição. Exprime, ao mesmo tempo, o seu conceito de cultura que corresponde à exigência de um posicionamento de limpidez de clareza, de verdade e de sensibilidade para as grandes questões da humanidade, porque só essa postura pode condizer com aquilo que Baptista-Bastos chama de “uma política de civilização”, uma política que, segundo ainda palavras suas, «não seja flutuante entre a versão fornecida pelos “políticos” e a mecânica discursiva dos “gestores”, pautada por interesses pessoais”.
E dentro deste âmbito, Baptista-Bastos é, na verdade, o pedagogo que nos ensina a reflectir e que alimenta a chama das gerações mais jovens do jornalismo, pelos ensinamentos preciosos, acompanhados em geral por conselhos de leituras e até de filmes, imprescindíveis para o conhecimento do ofício.
Cito algumas das suas frases que constituem pensamentos profundos de uma filosofia de natureza política e cívica:
«A democracia não se limita a uma teia de relações formais e de estruturas económicas mas, sobretudo, consubstancia-se em conteúdos culturais e políticos que nos relacionam uns com os outros».
«Os modelos apresentados nos últimos trinta anos esvaíram-se. Se recorrermos ao que foi dito pelos grandes dirigentes, verificaremos que a nossa educação política foi edificada através de sofismas e de uma mitologia vocabular exemplarmente eloquente e paradigmaticamente leviana e manipuladora. Falaram-nos ao primarismo das emoções. Ocultaram o primado da razão. Forjaram gerações de obedientes. Não exerceram a pedagogia do civismo, naturalmente criadora de cidadãos e não de servos».
«Vivemos a nevrose da dúvida. O desalento português tem a progénie numa flagelante desconfiança de nós próprios. O que nos conduz a ser apáticos ou agressivos. As fontes medievais da nossa literatura falam de violência e de melancolia. A ciclotimia que cunha o modo de ser português e que, afinal, celebra o fado e a pega de caras».
Mas Baptista-Bastos não é apenas um cronista em que exprime as sua opiniões de natureza política, mas também é autor de crónicas literárias magníficas, não fora ele um escritor exímio, como ainda possui a arte do bom conversador, condição essencial para bem entrevistar, como está patente no seu livro A palavra dos outros.
Na Carta para um Círculo de Amigos, que serve de intróito à obra Cão Velho Entre Flores, Baptista-Bastos reflecte e explica as motivações do processo literário, da produção do romance, da relação do escritor com a escrita. São suas estas palavras:
«Devo dizer, neste Círculo de Amigos, que o escritor é um blasfemo e um inimigo de si próprio, porque deseja reflectir uma experiência moral, fazer da experiência consciência e, por fim trabalha com matéria labiríntica. Mascara-se para dizer a verdade, ou o que ele entende ser verdade.»
A dimensão do Homem, com os seus valores emerge, pois, do seu universo literário.
Assim o testemunham os seus romances e as crónicas literárias nas quais os sentimentos que mais se realçam são a ternura, o respeito pela condição feminina e pelas relações humanas.
Na introdução ao livro de crónicas Lisboa contada pelos dedos, Baptista-Bastos interroga: «A crónica moderna é um género maior ou menor no arquipélago literário?»
E ergue-se em defesa deste género que tão mal tem sido tratado pelos teóricos literários que pouco ou nada a ele se têm consagrado. Na verdade, nas Teorias da Literatura, são escassas as referências à crónica, apesar de que grandes nomes da literatura e do jornalismo se tenham dedicado a ela, desde Fernão Lopes, passando por toda aquela plêiade de escritores do séc. XIX, Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz n’As Farpas, Fialho de Almeida n’Os Gatos, como ainda Pedro Lopes Mendonça, Gervásio Lobato n’A Comédia de Lisboa, Carlos Malheiro Dias ou Câmara Reis e ainda Guilherme de Azevedo, como bem lembra Baptista-Bastos, até aos cronistas dos nossos dias.
E nesta introdução a Lisboa contada pelos dedos Baptista-Bastos diz-nos mais sobre a essência e a estrutura da crónica do que a maioria dos teorizadores.
Vejamos algumas das suas considerações:
«Perdurável, ou não, como objecto de literatura (a crónica), reflecte, no entanto, o «espírito do tempo», é um exame de passagem e pertence, exclusivamente, isso sim, ao historial do jornalismo, sem nunca deixar de ser literatura». «O cronista escreve sobre uma notícia, um boato, um estado de alma, uma experiência pessoal, um rosto, um gesto, uma rua, um bairro ou uma cidade existente ou inexistente». «A crónica será, também, um inventário fugaz de pessoais emoções».
É com esta consciência daquele que reflecte de fora sobre o processo criador e que é, simultaneamente, produtor do texto, que escreve das mais notáveis crónicas que retratam, na sua globalidade, a cidade de Lisboa, com os seus tipos característicos, cidade que “foi começo da pátria e matriz da mestiçagem”, segundo palavras do autor. Cidade onde se misturam os tempos e as gentes, onde vão morrendo tradições e espaços, vivências e modos de estar, onde se substituíram os velhos cafés pelos bancos, tertúlias, pelo vaivém frenético e despersonalizado, mas, contudo, permanecendo sempre a Lisboa que amamos.
Lisboa contada pelos dedos é um livro de cerca de 83 crónicas, que por si só, valeria este Prémio da Crónica, onde o escritor revela a sua sensibilidade ao desnudar o ser humano em toda a sua dimensão, fazendo-o com ternura, humor e amor, em páginas que ficaram registadas em letras de oiro na literatura portuguesa e na imprensa nacional.
Discurso da presidente da Sociedade da Língua Portuguesa na entrega do Prémio João Carreira Bom, no dia 27 de Março de 2006