«Tudo começou pela linguagem. Entre os mais antigos vestígios humanos, contam-se os poemas escritos e compilados nos Vedas, em sânscrito, uma língua que desceu com os Arianos das vertentes ao sul dos Himalaias, seguindo o curso do Indo e do Ganges.»
António José Saraiva, O que é a Cultura?
A pátria é a língua. Dói, por isso, ver os maus-tratos que sofre o português, um pouco por toda a parte, no dia a dia, na escrita, na rádio, na televisão ou nos discursos de muitos responsáveis. A boa aprendizagem da língua é um acto de cidadania. Eis porque os órgãos de comunicação social devem ajudar numa campanha cívica pelo uso correcto da língua. Falar bem, escrever bem é fazer-se compreender, é respeitar os outros – é cuidar das ideias claras e distintas. Eis porque temos de ligar melhor educação e mais exigente culto da língua. Portugal tinha há trinta anos um quarto da população analfabeta e ainda se ressente desse terrível facto. Hoje, as coisas mudaram radicalmente. Os analfabetos literais correspondem ainda a 9 % da população, mas concentram-se nas faixas etárias mais elevadas. Todos os jovens com 15 anos de idade estão nas escolas. Impõe-se, porém, concentrar os esforços de todos – a começar nas famílias e a continuar na acção dos educadores e dos professores – no redobrar da exigência em relação ao falar bem e ao escrever bem. Tudo isto sem esquecer o papel dos meios de comunicação de massa, entre os quais a televisão tem uma importância crucial. Impõe-se, no fundo, que a educação de todos não prejudique a qualidade. Eis porque temos de encontrar um caminho inteligente que nos permita ter mais eficácia no tempo actual. O limiar da exigência deve ser elevado – e não o contrário.
A palavra deve ser cuidada. Através das palavras liga-se o pensamento e a responsabilidade cívica. Não é por acaso que hoje se volta a valorizar a oratória e a retórica – perante a pobreza dos discursos e da comunicação e a confusão dos argumentos. É a identidade como povo e como cultura que está em causa. Dê-se exemplo do que não deve ser dito. Use-se a pedagogia como factor de progresso. Perceba-se que a capacidade de aprender é a chave do desenvolvimento na sociedade contemporânea. Indique-se o uso correcto das palavras e da sintaxe. Aprenda-se a ordenar as ideias e os argumentos e a dialogar ou debater, contrapondo ideias a outras ideias, em lugar de desenvolver longos monólogos pobres e fechados. Perceba-se, por exemplo, que o verbo intervir se conjuga exactamente como o verbo vir (intervim, interveio, intervieram). Entenda-se que o plural de acordo é acordos com o fechado. Evite-se o galicismo «ao nível de» ou o anglicismo «implementação». Distinga-se «descriminar» e «discriminar», ou «cozer» e «coser», ou ainda «obsessão» e «obcecação». Diga-se «eu penso que» ou «eu não me esqueço de que», mas não se confunda o uso das duas formas... Não se semeie vírgulas a torto e a direito nas frases, separando sujeito e predicado, dividindo o que tem de ser unido ou tornando incompreensíveis as ideias que se pretende exprimir.
Dir-se-á que a língua portuguesa é difícil e, por vezes, traiçoeira. É verdade. E o certo é que no melhor pano cai a nódoa. Por isso mesmo, devemos ser cuidadosos e exigentes – desde a primeira infância, desde as primeiras palavras e as primeiras letras. E só há duas maneiras de promover o bem falar e o bem escrever: lendo, suscitando o gosto pela leitura, estudando com cuidado, usando o critério da exigência; mas também procurando falar simples e claro, de modo que se entenda o que cada um diz. Usar bem a língua é respeitarmo-nos – compreendendo-nos mutuamente. Recorra-se a bons autores, a bons dicionários e as boas gramáticas. Sempre que há dúvidas, procure-se a palavra e a formulação correctas. Na escrita, faça-se sempre a revisão, de preferência em voz alta. Como em tudo, o que interessa são os bons exemplos. E se falámos na literacia, como uso correcto da língua, do sentido das palavras e da sintaxe, falemos igualmente na numeracia, como uso correcto dos números. Usemos a boa lógica e pratiquemos um espírito que ligue a finura e a geometria, como queria Pascal. Exprimamo-nos sempre de modo que nos entendam. Arrumemos as ideias, os modos de calcular, a ordem do raciocínio, o sentido do discurso. Como disse o Padre Vieira, imperador da nossa língua: «As leis não são boas porque se mandam, senão porque bem se guardam»...
Mas a língua é uma realidade viva. Não pode estagnar. Se deixa de se actualizar, definha e empobrece. Por isso, cuidar da língua não pode ser fechá-la sobre si, recusando receber a riqueza da renovação, da recriação permanente, do intercâmbio com as novas realidades e as novas culturas.
Nesse sentido, a linguagem popular é um extraordinário manancial, onde se encontram as tradições e as inovações. Teixeira de Pascoaes dizia que «a linguagem popular é mais irmã do Verbo divino que a linguagem dos letrados. É a voz do sangue e da terra». E recordava: «o pego do rio, o boco dos vales, as horas mortas da noite, o nevoeiro da manhã são frases populares, de um misterioso e dramático sentido, e é fácil perceber-lhes a essência da legenda sebastianista»... Mas, para percebermos a linguagem popular, temos de entender o seu sentido sábio e correcto, e não a deturpação ou asneira. E se o mesmo Pascoaes falava do génio da língua, como «essência espiritual emanada dos seus vocábulos intraduzíveis», temos de entender esse génio, para além de «saudosos sentimentos», enquanto culto da compreensão do que somos e do que nos distingue dos outros. E assim a palavra «saudade» (que nos leva, por exemplo, ao Labirinto de Eduardo Lourenço, que é diferente do Labirinto de Octávio Paz, porque a «soledad» deste é a «solidão» que Pascoaes diz ignorarmos), longe dos saudosismos, leva-nos ao coração da língua. É desejo e lembrança para Duarte Nunes do Leaão e é gosto e amargura para Garrett. «O desejo é a parte sensual e alegre da saudade, e a lembrança representa a sua face espiritual e dolorida, porque lembrança inclui a ausência de uma coisa ou de um ser amado, que adquire presença espiritual em nós».
Que quer isto dizer? Que a língua é uma realidade viva, que faz parte da «arte de ser». E a verdade é que hoje ela representa um traço de união entre um mundo que os portugueses lançaram, mas que é criação de vários povos e de várias culturas. Leia-se João Guimarães Rosa – ou Pepetela e Mia Couto, Germano de Almeida e Albertino Bragança – e verifique-se como a língua portuguesa se torna rica e multifacetada em contacto com os trópicos. Riobaldo e Diadorim são cicerones de uma língua familiar e estranha, próxima e distante. O Grande Sertão e as suas Veredas é-nos dado por Guimarães Rosa como um fantástico mundo onde as palavras servem para descrever paisagens e afectos, natureza e singularidades, ódios e cumplicidades... «Dormi nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo – Deus estável». AS palavras nascem, vivem, movem-se inesperadas e ricas. «O múltiplo nos inebria», diz-nos Sophia. E, como disse António Cândido, no prefácio a Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque da Holanda, «o sentido moderno da evolução brasileira» mostra que ela se processou «conforme uma perda crescente das caractyerísticas ibéricas, em benefício de ritmos abertos pela civilização urbana e cosmopolita, expressa pelo Brasil do imigrante, que há quase três quartos de século vem modificando as linhas tradicionais» (Dezembro de 1967). E esta língua multifacetada e rica, património comum de vários povos e de várias pátrias – porque pátria de diversas pátrias – conduz-nos ao «homem cordial» de que fala Sérgio Buarque, citando Ribeiro do Couto. Pessoa cordial caracterizada pela lhaneza no trato, pela hospitalidade e generosidade e, sobretudo, pela aversão ao «ritualismo social». Em suma, pessoa acessível e aberta, com quem funciona o mecanismo dos afectos, que nos aproxime e nos encanta no contacto com o Brasil, enquanto outro lado de nós.
Língua portuguesa, língua de cordialidade e de afectos. A boa aprendizagem é um acto de cidadania. Temos de ligar melhor educação e mais exigente culto da língua. Usar bem a língua é respeitarmo-nos – compreendendo-nos mutuamente. A língua é uma realidade viva, não pode estagnar. Se deixa de se actualizar definha e empobrece. Urge, assim, apelar aos pedagogos, aos profissionais da comunicação, aos escritores e intelectuais, aos cidadãos em geral a fim de que trabalhem activamente para que a língua se enriqueça e para que o diálogo e o intercâmbio entre as diversas culturas floresça. O novo paradigma da educação ao longo da vida e da sociedade educativa centrada na aprendizagem coloca o tema da língua, das linguagens e da comunicação num lugar cimeiro. Importa que tal não seja entendido como mera questão nominalista ou de forma. Ligue-se língua e literaturas, entenda-se a cultura como convergência do património material e imaterial com a capacidade de criação e inovação. Bernard Pivot acaba de lançar em França uma campanha pela recuperação de palavras perdidas ou esquecidas. É um bom apelo à memória colectiva e ao civismo na sua melhor expressão. Não há plurilinguismo sem cuidar da qualidade do uso das línguas maternas. Não há diálogo autêntico entre culturas se não praticarmos o dever cívico de não deixar que as línguas sofram com o mau uso, com a degradação, numa palavra, com a confusão e a ignorância.