«Escrever é transformar a própria vida em literatura.»
Clarice Lispector
O Menino do Elefante, editado pela the Poets and Dragons Society, surge no ano em que Luís Filipe Sarmento celebra cinquenta anos de vida literária – voz única, original, sem recear riscos nem ceder a receitas, fazendo da literatura esse “trapézio sem rede”, susceptível de «ensinar o leitor a ver o mundo com novos olhos», tal como referiu Marcel Proust.
Entramos neste romance de Luís Filipe Sarmento como num espectáculo que nos enfeitiça. Sim, há momentos em que revisitamos os circos da infância, mas revelados do outro lado dos bastidores, transfigurados na sua faceta oculta, mas esse é apenas um dos panos de fundo. Outros se seguem nesta jornada de um narrador-protagonista, órfão, a viver no seio de uma família de artistas de circo, um menino que vai crescendo, amadurecendo, perante os nossos olhos, como sucede no bildungsroman, ou romance de formação. Um narrador que “se reza” desde muito cedo, consciente do seu poder pessoal, do facto de ter nas mãos as rédeas da vida, do futuro, da importância da criação, pois tal como afirma “criamos porque somos deuses. E, por isso, me rezo. Em meu nome e em nome dos loucos como Gaetano que fizeram abanar as consciências com o estandarte da liberdade.” (p. 129-130). Nesta esteira, notamos que são os artistas das mais variadas áreas que “esculpem a realidade com a sobrerrealidade do seu olhar”(p. 129-130), alargando deste modo os mais diversos horizontes, acendendo os sonhos.
No percurso inicial desta criança pelos caminhos da vida e da arte, o amigo elefante funciona como um refúgio, apoio e, simultaneamente, plataforma de contacto com a sabedoria da mãe falecida que acredita guiar-lhe os passos. Tal sucede em passagens onde, como nota Maria João Cantinho, na recensão publicada na revista Caliban, «há uma piscadela de olho ao realismo mágico, uma evocação da atmosfera felliniana».
A fase seguinte é marcada pela descoberta do amor, a fuga à família, o contacto com as outras dimensões da vida e da realidade, através de um recomeço sustentado pelo trabalho num jornal e o alojamento na pensão da Amélia, prostituta no Bairro Alto. Neste contexto, perante as ameaçadoras garras da ditadura, esboça-se também a evolução da identidade, espelhada num nome que antes parecia inexistente. Aliás, o protagonista é primeiro nomeado através de alcunhas atribuídas pelos outros, desde Fenómeno a Bebé. Só perante a necessidade de se assumir como autor, encontra o seu nome: Fernão Lucas. Neste ponto, Fernão evoca grandes cronistas como Fernão Lopes ou Fernão Mendes Pinto. Será com esse nome que assina um texto no denunciador das tremendas condições de vida dos orfanatos, sofridas por um amigo. Aliás, o ambiente de opressão, de medo instaurado pela sombra da ditadura transparece ao longo da obra, pois tal como declara o narrador: “Fui crescendo com a consciência que vivia num país aberrante, aleijado, esquizofrénico. E quis lutar como um guerrilheiro romântico contra a ditadura que asfixiava o meu país e a minha juventude que começava a despontar.” (p.248). Por conseguinte, a palavra desenha-se como arma em contraponto a todos os silêncios ( “O tanto que eu queria saber de palavras, de sons, de imagens no grande circo da linguagem” p. 156).
Em suma, O Menino do Elefante é uma obra verdadeiramente necessária nos tempos que correm, delineando-se como um grito de liberdade imprescindível perante as sombras emergentes na actualidade, mas também de resistência, um tributo à arte nas suas múltiplas formas, à imaginação, à literatura como trapézio, mas sobretudo como rampa para a criação de um futuro mais luminoso e livre.
Artigo inédito, cedido ao Ciberdúvidas pela autora, que o escreveu seguindo a ortografia de 1945.