As frequentes falhas de eletricidade em muitos bairros de Luanda leva os seus habitante a "pescar" formas alternativas. O pior é quando o curto-circuito é também linguístico – como aponta o autor nesta sua crónica à volta dos usos do português em Angola, publicada originalmente no semanário "Nova Gazeta" de 6/02/2014.
[Em Luanda] foram dois longos anos sem lâmpadas acesas, sem rádio nem telejornal e com as geleiras desligadas em casa. No bairro, os níveis de delinquência chegaram mesmo a atingir o sinal vermelho e ninguém podia sair de casa a partir das 18 horas.
Por incrível que possa parecer, muitos moradores recém-chegados, com medo dos assaltos à noite e dos péssimos relatos da vizinhança, passavam apenas o dia e, no final da tarde, iam passear para outras zonas mais seguras. «Aqui estamos a sofrer», queixavam-se.
Felizmente, a luz chegou com boa intensidade e tensão à medida e com todas as outras unidades físicas e eléctricas que lhe são inerentes. Mas a tão esperada luz não veio para todos. De um lado da rua, era possível ver alegria e alívio, música alta, portas abertas até tarde. «Até que enfim…», suspiravam.
Do outro lado, no entanto, ainda se ouvia o barulho dos geradores e o murmúrio dos moradores que não tinham sido agraciados com um piscar da lâmpada. A solução era ‘pescar’, não o peixe, mas criar uma forma de ter energia das casas contempladas.
«Logo à noite, o Dorivaldo vai ligar o nosso fio no cabo dele e no fim do mês damos-lhe uma ‘gasosa», combinam dois moradores.
Uma semana depois de se ter restabelecido a corrente, uma fagulha no poste. «A EDEL não presta. Energia que só dura dois?», reclamam os moradores. «Não é culpa da EDEL. Esses moços andam a pescar "anarticamente", por isso deu essa faísca», esclareceu uma moradora.
A comissão de moradores informa a EDEL o que se estava a passar, a empresa de electricidade considerou o acto como «vandalismo». «Por isso, vamos eliminar as ligações anárticas», avisa um dos funcionários.
Não foi a primeira vez que foram identificadas estas ligações. A EDEL sabe, mas, às vezes, faz olhos de mercador. Mas desta vez, segundo o chefe de equipa, vão agir correctamente: «Vão eliminar todas as ligações anárquicas. Se pensam que ninguém está atento, andam enganados», reforça.
E têm razão. Não se pode andar por aí a fazer coisas de forma anártica. A forma correcta para nos referirmos à desordem, à confusão, é anarquia, que provém do grego (anarkhía).
Outros textos de Edno Pimentel sobre o português de Angola
in semanário Nova Gazeta, de Luanda, publicado no dia 6 de fevereiro de 2014 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.