«Simplificar, sim, mas com regras e bom senso» é a reflexão do provedor dos leitores do Diário de Notícias, e do respectivo director, a propósito da transposição do «português falado» para o «português escrito», nas entrevistas jornalísticas.
Uma das tarefas mais monótonas — mas também mais exigentes do ponto de vista da qualidade do “produto final" — no quotidiano de um jornalista é a transcrição de entrevistas, ou seja, a passagem do gravador para o papel de diálogos que, por vezes, se prolongam por algumas horas.
O provedor sempre preferiu encarregar-se pessoalmente desse trabalho, apesar de os serviços de apoio do DN terem, na altura (já lá vão alguns anos...), capacidade operacional para tal missão. Sendo o entrevistador o responsável directo pela passagem do "português falado" para o "português escrito", havia, desde logo, a vantagem de se identificar melhor alguns excertos mais duvidosos da gravação, bem como de dar ao texto uma redacção já muito próxima da sua versão final.
Entrevistados havia que, pelo seu discurso torrencial e desorganizado, aqui e ali informal em excesso, exigiam uma edição apurada; outros, mais raros — e a memória do provedor reteve, sobretudo, Jaime Gama —, falavam como se estivessem a escrever... e bem. Nessas circunstâncias, o esforço do jornalista era consideravelmente aligeirado.
Vem esta introdução a propósito das cautelas que o jornalista deve ter em matéria de "liberdades" de linguagem (escrita). O provedor não é um fundamentalista e bem sabe que, ao longo dos últimos anos, influências variadas trouxeram ao português corrente palavras e expressões que hoje fazem parte do discurso diário de faixas consideráveis da população. Edições mais recentes de dicionários reputados não ignoraram essas inovações.
O provedor pensa, mesmo assim, que cabe a um jornal que se reclama de «referência» ou de «qualidade» uma atitude de rigor e exigência neste domínio. Ou seja, uma coisa é a transcrição, em discurso directo, de palavras de terceiros que podem ser relevantes para o conteúdo de uma matéria noticiosa, outra, assaz diferente, é a incorporação, no texto do jornalista, de termos que, embora utilizados em algum "português coloquial", não cumprem os requisitos mínimos de elegância (que não é antónimo de simplicidade) que se esperam de um jornal «bem escrito».
Vejamos o protesto do leitor António Dias:
«O DN não cessa de surpreender! A frescura da atitude, a informalidade à la SIC Radical, são contagiantes. Ainda hoje se podia ler (e na primeira página) esta pérola de linguagem coloquial: “A PSP pediu ao SIS informações sobre a possível presença de elementos extremistas anarcas (...)”. Se o tom “tu cá, tu lá” pega, ainda nos arriscamos a ler, um dia destes, que “a tia Ilda é a cabeça-de-lista comuna para o PE” ou que “os chuchas continuam a pedir a maioria absoluta'”... Valha-nos Deus. Cumprimentos (e não “ciao, pá”).»
A pedido do provedor, escreveu o director João Marcelino:
«O leitor tem inteira razão no ponto fundamental da carta enviada ao provedor: o DN não pode usar expressões como a que surgiu no texto de manchete da capa em causa.
«Tratou-se, claro está, de um lapso pelo qual nos penitenciamos e pedimos desculpa a este e a todos os leitores.
«Estamos perante um caso de uma infeliz transposição para o jornal de uma expressão usada no “calão” das forças policiais, para a qual o DN acabou por se deixar arrastar, usando-a sem a necessária reflexão. É uma situação pontual, que nos esforçaremos para que não se repita. Ainda assim,espero que o nosso leitor reconheça que este exemplo está longe de se poder comparar aos utilizados na caricatura, irónica, que faz na carta dirigida ao provedor (“a tia Ilda é a cabeça-de-lista comuna para o PE” ou “os chuchas continuam a pedir a maioria absoluta”.).
«Quanto à questão de fundo, estamos de acordo: a intenção de dar maior frescura e simplicidade à linguagem jornalística no DN não passa por exemplos como este, que são um acidente de percurso. Passa, essencialmente, por usar no jornal uma linguagem directa, simples, substantiva, mas correcta e que respeite a qualidade deste centenário projecto jornalístico. Ou seja, no DN uma pessoa não se "desloca na sua viatura para ir levar o educando ao docente de Matemática no respectivo estabelecimento de ensino, de forma a solicitar-lhe que lhe seja ministrado o fármaco com princípios activos para a elevada temperatura corporal", mas sim "vai de carro à escola do seu filho pedir ao professor de Matemática que lhe dê o remédio para a febre". Simplificar, sim, mas com regras e bom senso. Neste caso falhou.»
O provedor concorda e mais não tem a acrescentar. Espera, apenas, que não escapem aos jornalistas do DN estes dois parágrafos da autoria do seu director.
In Diário de Notícias de 30 de Maio de 2009