Entre o purismo e o "deixa-andar" linguístico está a virtude – parece ser essa a tese de Desidério Murcho, no Público
A correcção linguística é vista por vezes como uma questão de boas maneiras, entendidas não como um acto generoso de civilidade que tem como fim um convívio mais agradável entre todos, mas antes como uma marca de superioridade social que tem como fim oprimir os outros. É como ter vergonha de pronunciar "lête com caféi", à alentejana, mas ter orgulho em adoptar a pronúncia de certas classes sociais prestigiadas. Isto prostitui a língua, que deixa de ser vista principalmente como um instrumento de comunicação e conhecimento, para se tornar um instrumento político para demarcar territórios sociais. Nesta mesma linha, encara-se muitas vezes a gramática, a sintaxe ou a ortografia como instrumentos de opressão social e não como um instrumento que devemos conhecer melhor, se o nosso trabalho ou interesse o exige.
Num campo oposto está uma atitude que vê todo e qualquer uso da língua como legítimo, recusando aceitar a tradicional distinção entre a língua culta e a língua popular, ou entre o registo oral informal e o registo escrito formal. Num certo sentido, é verdade que a língua é exactamente o que as pessoas quiserem fazer dela: é o modo como as pessoas falam ou escrevem que determina o que é a língua, e não qualquer entidade linguística abstracta e normativa que determina como as pessoas devem usar a língua.
Ironicamente, esta perspectiva acaba por ter como resultado o mesmo tipo de opressão política de quem encara a língua como um instrumento de demarcação social. Pois ao vender a mentira de que todos os modos de falar a língua são iguais, só por se recusar correctamente a ver uns como superiores aos outros, esta posição fecha num gueto quem não tem amplos recursos de comunicação, reflexão e raciocínio, vendendo-lhes a mentira de que todos os modos de usar a língua se equivalem. É verdade que nenhum modo de usar a língua é superior ou inferior a qualquer outro, mas isso não é por não haver diferenças imensas de sofisticação, subtileza e poder expressivo entre diferentes modos de usar a língua, mas porque a classificação de tais diferenças em termos de superioridade e inferioridade é inapropriada por recorrer a conceitos adequados apenas às desassisadas hierarquias sociais.
O nosso objectivo educativo e público deve ser dar mais recursos linguísticos a quem os quiser, mas procurando desligar isso definitivamente da apropriação social e política costumeira. As pessoas não devem ser inferiorizadas ou oprimidas, na escola ou em qualquer outra parte da vida, por pronunciar palavras deste ou daquele modo, por dar erros de ortografia ou por não dominar sintaxes complexas ou léxicos sofisticados. Devem é ter a oportunidade de conhecer melhor o seu instrumento linguístico, para que sirva melhor as suas necessidades. E não devemos esquecer que a língua alarga-se e torna-se mais sofisticada exclusivamente pelo uso que fizermos dela, pelo que qualquer atitude purista pode impedir o enriquecimento da língua, em vez de o incentivar.
Público, 17 de Março de 2009