« (...) Lembrem-se da bicicleta, estamos aqui a discutir como se anda de bicicleta, mas o importante é que ela ande, com o nosso impulso mas como se fosse sozinha. (...)»
O que é a linguagem? Parece aquele paradoxo sobre o tempo: quando não me perguntam, sei o que é, mas, se se perguntarem, não sei. Habitualmente não questionamos a linguagem, nem dizemos “a linguagem”, dizemos isto ou aquilo, falamos, respondemos, a língua é uma ferramenta, com as suas utilidades, os seus automatismos, os seus entusiasmos. Pensar sobre a linguagem é como pensar sobre andar de bicicleta enquanto se está em cima da bicicleta, um prenúncio de queda.
E, no entanto, somos por vezes forçados a isso, é a nossa vocação ou a nossa obrigação. Porque é que isto está aqui? O que quer isto dizer? Porquê aquilo em vez disto? Isto diz-se? Que sentido faz isto? Quando uso esta palavra, estarei a usar a palavra certa? O que é a palavra certa? Fomos ensinados que as palavras são denotativas, evidentes, depois aprendemos à nossa custa que são convenções, signos arbitrários, ou quase. A palavra que para mim significa isto, o que significará para os outros? Estou a usar esta palavra porque ela me diz alguma coisa, alguma coisa sobre a própria palavra, sobre a minha história com essa palavra, está associada na minha cabeça a uma ideia ou a uma imagem, ou então não a associo a nada, é como que uma palavra sem ilustração num dicionário ilustrado.
Ouve isto, o que é que isto significa para ti? Diz-me, digam-me. Eu nunca uso esse verbo, tem uma conotação jurídica. Tem um travo antigo. Tem um significado sexual não pretendido. Essa conjugação é impossível. Há outros sinónimos, palavras menos ambíguas, o quê, essa não é ambígua? Eu aprendi assim, mas realmente o dicionário diz outra coisa. Eu digo como o dicionário, mas em geral não se diz assim, ou acho que não. Para mim isso significa outra coisa, diga o dicionário o que disser. Isso soa-me mal. Isso é um uso indevido. Isso tem uma determinada conotação, para ti não tem, para vocês não tem? Não dirias isto nesta situação? O que dirias nesta situação? Eu não sei o que diria. Eu nunca estive nesta situação.
Esta palavra usa-se? Quem é que a usa? No meu tempo usava-se. A gente mais nova diz assim? Como é que se diz agora? Lembram-se quando se dizia assim? A sério que não se lembram? Era só eu que dizia? Essa formulação parece-me ousada, trivial, desrespeitosa, sentimental, ofensiva. O que é que achas? Dessa palavra não gosto, eu sei que é normalíssima mas não gosto, não uso. Porquê? Por razão nenhuma. Digo porque sim, não digo porque não. Ensinaram-me assim. Dizia-se em minha casa. Associo esse adjectivo a tempos tristes. A sério que vos parece alegre? Não é possível a linguagem ser tão variável. É normal, a linguagem é tão variável. Tens o teu vocabulário, como tens um círculo de amigos. E tens ex-palavras, como por vezes tens ex-amigos. Essa já não uso. Essa desiludiu-me. Essa não é sequer uma palavra, é uma falsidade.
Podes dizer outra vez? Agora pareceu-me melhor. É tudo uma questão de entoação. Palavras ditas para dentro, interrogativas, mastigadas, palavras pesadas atiradas como se fossem leves. Mudamos ou fica assim? É como quiseres. Por mim fica assim. Até te ouvir não gostava, é diferente uma voz. Eu nunca diria assim. Tu é que tens de dizer, isto é para tu dizeres, dizemos como quiseres dizer, como tu dizes. Lembrem-se da bicicleta, estamos aqui a discutir como se anda de bicicleta, mas o importante é que ela ande, com o nosso impulso mas como se fosse sozinha. A linguagem foi-nos dada para que nunca a dominássemos. Foi-nos dada para que, como estafetas, a entregássemos.
Texto publicado no na revista do Expresso, que aqui se reproduz com a devida vénia (o autor segue a antiga ortografia).