«A primeira autora da nossa língua é a cultura portuguesa, tal como, quando nascemos, nascemos para dentro de uma cultura que já está nascida e que já nasceu há muito tempo.»
Às vezes, não somos nós que usamos a língua portuguesa – é a língua portuguesa que nos usa a nós. É fácil esquecermo-nos que, antes de começarmos a falar e a escrever (a decidir o que vamos dizer e o que vamos deixar escrito), já está a cultura portuguesa a usar a língua dela para dizer o que lhe convém, da maneira que lhe convém.
A primeira autora da nossa língua é a cultura portuguesa, tal como, quando nascemos, nascemos para dentro de uma cultura que já está nascida e que já nasceu há muito tempo.
Também os peixes são todos diferentes e vivem todos dentro de água mas, por isso mesmo, não sabem que coisa é a água nem consideram que é aquilo que lhes é comum, uma causa digna de ser colectivamente defendida e amada.
Podemos aprender línguas mas as culturas são mais difíceis, fugindo até às definições. Veja-se uma frase que ouvi hoje, dita por um senhor que tinha deixado cair uma faca a um empregado de mesa: “Se calhar, vou precisar de outra faca.”
Aprende-se mais imaginando a resposta de alguém que conhece a nossa língua mas não a nossa cultura, levando tudo à letra.
A «Se calhar, vou precisar», responde: «Tem alguma ideia de quando é que vai saber se vai ou não precisar? Há alguma previsão? É que me daria jeito, para saber quantas facas é que vão ser necessárias para o serviço de esplanada.»
O se calhar em português significa «de certeza» e o vou precisar significa «preciso»..
A pergunta reveladora é “porque é que nós, Portugueses, temos tanta vergonha de dizer simplesmente “preciso de uma faca” ou “traga-me uma faca, se fizer favor"?
E não “podia trazer-me uma faca?”.
Porque, nesse caso, “sim, antigamente eu podia trazer-lhe facas, garfos e tudo o mais que quisesse, mas agora já não posso, doem-me as mãos”.
Crónica incluída no jornal Público em 25 de maio de 2021. Segue a norma ortográfica de 45.