O secular "conto do vigário" é o tema desta crónica de Edno Pimentel, publicada na sua coluna Professor Ferrão do semanário angolano Nova Gazeta. Nela aborda o uso dos verbos comer e disvolver para referir, respetivamente, o ato do burlão e aquilo que o burlado exige quando descobre a tramoia.
Não sei qual foi o valor que o rapaz deu, mas a necessidade de conseguir um emprego levou-o a confiar de olhos fechados no primo do amigo do irmão mais velho do vizinho da porta ao lado, no Mártires do Kifangondo [bairro de Luanda].
Deve ter sido algo significativo, mais de 150 mil kwanzas [cerca de 1200 euros] porque depois de quase quatro meses, ávido por começar uma nova rotina, sair de manhã cedinho, regressar às 18 e sentir-se útil, embora o fosse de alguma forma, claro, queria poder ajudar a família com as despesas de casa.
Quando fechou o negócio, o qual a mãe era contra, prometeu inscrever o irmão mais novo de 17 anos numa escola de condução, para ajudá-lo com as despesas de casa. «Quando eu começar, vais trabalhar comigo, estás a ouvir?»
A mãe, por já ter sido burlada algumas vezes, alerta para os riscos que corria de não ter emprego algum, nem o dinheiro de volta. «Esses senhores quando querem dinheiro "conseguem" emprego para toda a gente. Por que não emprega ainda o teu amigo que também precisa de trabalho?», pergunta. «Ele também está à espera da resposta do senhor, mamã.»
«Está bem. Não digas que não te avisei. Este senhor só te vai comer o dinheiro», previne. Para o jovem, «quem não arrisca não petisca». Agora, já nem o vizinho de porta quer ouvir falar no primo do amigo do seu irmão mais velho. «Eu não tenho nada que ver com isso. Quando vocês fizeram o vosso negócio, eu não estava presente», defende-se.
Com um ar de desilusão, começa a perceber, tarde, que alguma coisa não batia certo. «Se ele comer o meu dinheiro, aconteça o que acontecer, ele vai disvolver», ameaça. «Como é que uma pessoa consegue fazer isso com os outros? Comer o dinheiro de uma pessoa que está à procura de emprego?», lamenta.
Como "comeu" não sei, mas este não é o primeiro caso de burladores a comer o dinheiro dos outros, ou seja, a roubar, a enganar as pessoas, garantindo-lhes emprego que nunca recebem. O pior é que as pessoas cujo dinheiro é "comido" sabem que nunca lhes será disvolvido, mesmo assim, insistem.
De qualquer forma, o facto de os burladores andarem nessas práticas ilícitas não significa que devamos incorrer também e disvolver. Isso não está certo!
O correcto, do ponto de vista da língua portuguesa, é o vocábulo devolver, que tem o significado de «enviar; mandar de volta; restituir; reenviar; recambiar».
Outros textos de Edno Pimentel sobre o português em Angola
In jornal Nova Gazeta, de Luanda, publicado em 19 de setembro de 2013 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.