No português coloquial de Angola, só não tem apenas, já, o clássico sentido do advérbio de exclusão – como se conta nesta crónica do jornalista e professor Edno Pimentel, na sua coluna, “Professor Ferrão”, no semanário Nova Gazeta de 19/12/2013.
No domingo, deu para aliviar um pouco o cansaço. Mas é preciso dizer que a Mira, a minha bebé, ajudou, e muito, para este fim-de-semana de relaxe: convidou-me a tomar um caldo de garoupa na Praia Amélia, em Luanda, um dos espaços que acolhe as dores de cabeça das "pelenguenhas" (ressacas).
Estar na Praia Amélia, por si só, já dá uma sensação de conforto. A brisa marinha consegue afastar os enjoos do lúpulo, das castas alentejanas, ou do azedume do marufo de Catete.
É um caldo milagroso. Une pessoas desconhecidas, encurta as horas e, melhor ainda, inspira o poeta e o professor Ferrão. É claro que esta praia serviu apenas, mais uma vez, de pretexto, porque grande parte dos frequentadores vem de longe, até mesmo do estrangeiro.
As barracas albergam várias mesas brancas de plástico. Numa delas estava um casal lobitanga que já ia na segunda garrafa de Johnny Walker e chegava mesmo a sentir-se na Escócia.
Eles queriam um caldo em que pudessem sentir o gosto salubre do peixe seco. «Dona, este prato está insosso. Passa-me só o sal», pede a cliente.
«Vou já trazer, minha filha. Mas a menina tem de ter um pouco de mais respeito. Estou a vender aqui, mas também mereço respeito. Eu também estudei», repudia a senhora.
Eu estava na mesa ao lado e ouvia a conversa toda enquanto esperava que a comida da Mira arrefecesse. Por acaso, apesar do estado avançado de embriaguez da cliente, não ouvi nada que se pudesse considerar falta de respeito.
«Minha senhora, o que fez ela?», pergunta o marido com um ar um tanto preocupado. «Meu filho. Eu aprendi com os meus pais, ainda no tempo do colono, que quando fazemos um pedido, devemos dizer sempre ‘por favor’», explicou.
«Mas ela disse, mãezinha. Talvez a mãe não se tenha apercebido.»
«Não disse, meu filho. Você até me parece educado, mas a menina, não. Ela disse apenas “passa-me só o sal” e não ouvi nenhum ‘por favor’», insistiu.
É uma realidade que não acontece apenas com os de Benguela. Já ouvi e vivi esta experiência noutras províncias. Quando fazemos um pedido, a palavra só, às vezes, tem um valor de gratidão e de espeito, significando «por favor». Só [no português coloquial de Angola] não é só um advérbio de exclusão.
[Outros textos de Edno Pimentel sobre o português em Angola]
in semanário Nova Gazeta de Luanda, publicado no dia 19 de dezembro de 2013 na coluna do autor, "Professor Ferrão". Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.