Desde o século XIX, os principais jornais de Lisboa e do Porto têm um espaço para a defesa da língua portuguesa. A tribuna hoje ocupada no Diário de Noticias por mestre José Pedro Machado principiou com Cândido de Figueiredo.
Passaram as colunas com periodicidade nos jornais e revistas para a rádio e televisão e, recentemente, para a Internet. Esta última ficou a dever-se ao professor José António Camelo, que presidiu à Sociedade de Língua Portuguesa. Tive o gosto de o conhecer, de o admirar e de lhe responder à solicitação que me dirigiu, a fim de tomar parte num projecto de comemorações do centenário do padre António Vieira. Por essa altura estava empenhado em organizar (e não sei se já se concretizou) a sistematização de textos de Raul Machado. Nos anos 50 e 60, na televisão, em "charlas" semanais e com notável poder de comunicação, despertou o interesse para os problemas, mistérios e subtilezas da língua portuguesa.
José Camelo, que faleceu há dias, com 57 anos, quando muito ainda dele se esperava, introduziu, sob a chancela da SLP, a página da Internet Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Procurou, dentro do possível, conciliar as necessidades de uma norma de ensino com a independência dos linguistas.
E porquê dentro do possível? Os consultórios linguísticos, por muito que se diga em contrário, são um dos maiores pomos de discórdia. Figuras de grande prestígio e que na vida quotidiana tiveram existência pacífica, como, por exemplo, Leite de Vasconcelos e Cândido de Figueiredo, travaram controvérsias tremendas. Quando se fizer a história das polémicas, será possível avaliar até que ponto se acirrou a intransigência, por questões de lana-caprina.
O escritor João de Araújo Correia, cujo centenário do nascimento decorre este ano, também se preocupou muito com a língua portuguesa. Não só no aperfeiçoamento exaustivo dos textos de ficção e crónica mas, também, na recolha de vocábulos e, ainda, na defesa pública da fala e da escrita. Na sua tábua bibliográfica assinalam-se: Linguagem Médica Popular Usada no Alto Douro (1936); Por Amor da Nossa Fala - Notas sobre Pronúncia (1952); Enfermaria do Idioma (1971).
Estes livros foram antologiados por Fernando de Araújo Lima em A Língua Portuguesa (edições Verbo, com o patrocínio da Secretaria de Estado da Cultura). É dedicado à memória de Aquilino Ribeiro e inclui a seguinte epígrafe de José Leite de Vasconcelos: "A língua é um dos elementos da nacionalidade: pugnar pela vernaculidade daquela é pugnar pela autonomia desta."
Que recomenda João de Araújo Correia? Alguns exemplos: "Respeitem-se os dialectos, mas não se consinta que nenhum deles se arvore em mentor dos outros. Língua é língua, dialecto é dialecto. (...) O lar do idioma português é Portugal. Nele deverá arder sempre a sagrada fogueira da pronúncia branca." "Pronúncia é poesia. Cada palavra pronunciada é uma rosa singela. Perderia a graça, perderia a inocência, se trouxesse presa, numa etiqueta de zinco, a história da família." "Se és português, não aprendas português com os filólogos."
Apesar disto, seguiu a doutrinação implacável dos filólogos do fim do século XIX e começo do século XX, com a obstinação de corrigir o que classificava erros e vícios da linguagem. Insurgiu-se por vezes com razão e autoridade, mas noutras circunstâncias emitiu opiniões que, no mínimo, julgamos absurdas.
Será melhor citá-lo: "Cobre a cara com uma serapilheira se disseres face a isso. Deves dizer em vista disso." "Telejornal e telespectador fora dos serviços televisivos são patetismos inúteis. Basta dizer jornal e espectador." "Se houvesse língua portuguesa, não haveria Partido Social-Democrata. Poderia haver Partido Social Democrático."
O exacerbado purismo de João de Araújo Correia transforma-o num cavaleiro do Apocalipse: "O idioma está condenado à morte. Perde, de hora a hora, o carácter, o vigor, a graça, a poesia." "O português dos nossos filhos não será português. Será uma burunganga."
Tão assanhado fundamentalismo seria impensável se não transcrevêssemos, na íntegra, estas insólitas afirmações. Cada qual faça os comentários que entender. E sem cobrir a cara com uma serapilheira...
In "Diário de Notícias" de 28/3/1999.