«Este breve percurso pelo mundo — como palavra, mais do que como realidade — fala-nos de um anseio que ainda não nos abandonou: o de que o nosso mundo seja algo de harmónico e não caótico [...].»
Nas Confissões de Agostinho de Hipona, mais conhecido por Santo Agostinho, no seu livro undécimo, aparece no original latino uma palavra intrigante: Mundicordes. Não é fácil à primeira perceber o que ela significa. Mas como aparece ao lado de outra com a terminação igual, misericordes, que por sua vez é mais parecida com uma palavra portuguesa que ainda usamos, misericordiosos, dá para começar a tentar adivinhar. Se misericordes significa misericordiosos, mundicordes significaria… mundicordiosos? Mas que diabo será mundicordiosos? Os que estão de acordo com o mundo? Os que se acordam, no sentido de se porem em sintonia, ou em harmonia, com o mundo?
Na verdade, mundicordes não quer dizer nada disso. A palavra não aparece muitas vezes em autores latinos, e pouco em dicionários latinos, mas num daqueles em que aparece, lá vem o significado: mundicordes quer dizer «limpos de coração». O facto de a palavra aparecer pouco, contudo, não quer de todo dizer que ela fosse difícil de entender para um falante de latim do tempo de Agostinho. Pelo contrário: como a maior parte das suas palavras, esta pareceria límpida e clara a quem a lesse ou, com mais probabilidade, ouvisse. Aquela terminação cordes seria imediatamente entendida como respeitando ao coração: cor é a palavra latina para coração (e de onde vem a nossa palavra coração). Por isso «saber de cor» significa não só memorizar mas «saber pelo coração», pois muitos Antigos, e mesmo muitos renascentistas, acreditavam que a memória estava no coração e não no cérebro. De cor vêm também palavras como cordato ou cordial, ambas relacionadas com «ter bom coração».
Uma vez estabelecido que mundicordes têm que ver com o coração, ou com ter algo ou alguma coisa no coração (tal como misericordes significa «ter a compaixão no coração», que é o significado original de misericordioso), restaria saber o que é aquele mundus que aparece ali sob a forma mundi, antes de cordes. E é aí que o primeiro instinto nos engana, pois sabemos que mundus quer dizer mundo, mas na verdade, nesta palavra, quer dizer limpo. Mundicordes não quer assim dizer nenhuma das hipóteses em que primeiro pensámos, nem tem que ver com trazer o mundo no coração, mas quer muito mais prosaicamente dizer «ser limpo de coração». E assim pegamos em qualquer tradução das Confissões e lá está: os «pobres de espírito e os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros e pacíficos». Estes puros, na verdade, não são puros mas uma coisa apesar de tudo mais alcançável: os nossos mundicordes, os «limpos de coração».
Mas então por que é mundus limpo, além de mundo? Voltamos aos dicionários e vemos que estão lá as duas definições, uma ao lado da outra, aparentemente sem relação. Mundus, num significado que hoje se perdeu, mas que para os latinos antigos era um termo do dia-a-dia, significa limpo, asseado ou elegante; o verbo mundare significava limpar. Este significado perdeu-se, mas ainda temos o seu contrário: daí vem a nossa palavra imundo. Uma coisa imunda é o contrário de limpo ou mundus, o que quer dizer que é suja, e o mesmo vale para as imundícies.
O que é estranho em toda esta história — se ainda me estiverem a seguir, o que de certa forma é mais estranho ainda — é que mundus significa mundo e limpo sem que ambos os significados pareçam relacionados.
Talvez sim, ou talvez não. O termo que os romanos antigos usavam em primeiro lugar para mundo não era mundus, mas orbs, que quer dizer simplesmente globo, e de onde vem orbitar — o que de passagem nos permite perceber que os Antigos tinham perfeitamente clara a possibilidade de que a Terra fosse redonda.
Uma das hipóteses para a criação da palavra mundus em latim é que fosse necessária aos romanos antigos uma palavra que correspondesse ao grego kosmos, de onde vem o nossos cosmos, e que significa também mundo. Ora tanto na mitologia como no Antigo Testamento e depois no cristianismo, o mundo não é criado do zero (um ponto muito importante que é muitas vezes esquecido). O cosmos não é criado do nada nem acrescentado ao nada; se lermos bem, veremos que ele é separado do caos. O caos é o contrário do cosmos: este desordenado, sujo, estridente onde o outro é ordenado, limpo, harmónico. Talvez daí que os latinos tenham precisado da palavra mundus como correlata de cosmos e oposta à desordem e imundície do caos.
Este breve percurso pelo mundo — como palavra, mais do que como realidade — fala-nos de um anseio que ainda não nos abandonou: o de que o nosso mundo seja algo de harmónico e não caótico, algo mais do que uma simples esfera sem vida, mas um esplendor natural (o terceiro significado de mundus, além de limpo e mundo, é ornamento) do qual possamos retirar um sentido que nos alimente.
A crónica, que saiu assim até agora, pode ficar mesmo sem qualquer motivo de atualidade. Ou, se quiserem, podem dedicá-la à 75.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que começa hoje enquanto escrevo, a primeira na história a fazer-se apenas virtual, em tempos de pandemia. Agostinho que nos perdoe, mas aquela palavra merecia mesmo ser mundicordiosos: com o mundo no coração. Precisamos disso.