«(...) [N]o século passado essa frase magra precisava engordar. Os elementos nutridores eram justamente o adjetivo e o advérbio. «O sol nasceu» – e daí? O sol nasce todo dia (...).»
Antigamente escrever bem era ser precioso, usar palavras pouco comuns, burilar a forma. Hoje o que se aprecia é o estilo sóbrio e descarnado, cujo modelo é Graciliano Ramos ou Dalton Trevisan.
Aí pelo século XIX, não se dizia «O sol nasceu». Uma frase como essa era um resumo que o autor rascunhava e escondia, com medo de que o acusassem de falta de imaginação ou indigência verbal. «O sol nasceu» – precisa dizer mais? Hoje os manuais dos cursos de Comunicação dizem que isso basta. Para eles, a boa frase é a que privilegia substantivo e verbo. Adjetivos e advérbios são excrescências que debilitam a expressão.
Mas no século passado essa frase magra precisava engordar. Os elementos nutridores eram justamente o adjetivo e o advérbio. «O sol nasceu» – e daí? O sol nasce todo dia. Esse fato corriqueiro, dito assim de modo seco e banal, não comove ninguém. Não basta a simples enunciação dessa verdade imorredoura para despertar no leitor as ressonâncias visuais e afetivas do nascer do sol.
Então o cronista vestia o fraque (se estivesse em casa, botava um pijama de seda cheirando a alecrim), introduzia o charuto na piteira, sorvia longamente a fumaça e começava: «O astro-rei...». Por que chamar o sol de sol? Astro-rei era bem mais expressivo, tinha a magnificência da metáfora.
«O astro-rei, brilhante e sanguíneo...» Ah, os adjetivos. Bastaram essas duas palavrinhas para injetar no sol força e brilho. É impossível agora não visualizá-lo em todo o esplendor do dilúculo (que, para quem não sabe, é o nome que se dá ao crepúsculo matutino).
Satisfeito, prosseguia nosso cronista: «O astro-rei, brilhante e sanguíneo, rompe despudoradamente a linha do horizonte...» Agora apareceu o advérbio de modo. Nada como ele para acrescentar ao verbo matizes sensoriais. A frase incha um pouco, é verdade, mas estávamos longe do rigor anorético com que hoje se vestem ideias e modelos.
E vinha o desfecho, que devia ser marcante: «O astro-rei, brilhante e sanguíneo, rompe despudoradamente a linha do horizonte e lança revérberos dourados na natureza estremunhada.» O cronista sorria, saboreando a animização presente na imagem final. O que faz o sol a cada novo dia senão restaurar as forças de uma natureza desfalecida em sombras? Esplêndido!
Depois de uma nova tragada, ele se dispunha a escrever a frase seguinte. Tinha paciência e sobretudo tempo para urdir aos poucos o texto. A nós, que vivemos o imediatismo de um mundo cibernético e globalizado, resta-nos dizer simplesmente: «O sol nasceu.» O que, para falar a verdade, hoje parece não interessar a ninguém.
Crónica publicada no mura brasileiro Língua e Tradição (Facebook, 7 de maio de 2021).