Alguns «(des)encontros consonantais» nos usos do português de Angola e do Brasil, nesta crónica do jornalista e professor Edno Pimentel, publicada no semanário "Nova Gazeta", de 24/04/2014.
O Ngomené foi sempre quem me deu umas boas dicas. É um garoto afável, aliás, qual garoto qual quê? Hoje é um homem e até já frequenta o segundo ano da Faculdade de Ciências [em Luanda].
Tem sempre um sorriso que, às vezes, torna difícil dar conta quando está triste ou mal- disposto, o que é muito raro. «Como é, meu kota? Está tudo bala ¹?», saúda-me com uma voz penetrante e cheia de rouquidão própria de quem está sempre a charlar.
«Kota, o teu peneu está vazio. Não é melhor trocarmos já?», oferece-se. E naquela noite, eu estava completamente cansado, acabava de corrigir mais de 360 provas e não me via com disposição nem força para carregar um minidicionário.
Havia outros rapazes na rua que esperavam pela chegada da madrugada e irem à ‘rave’. «Não vou chamar ninguém. Eu consigo trocar isso sozinho. Esses miúdos são muito refilões», exclama.
Eu ajudei-o, claro. A referência era 255/55 R18. Era apenas um, mas tinha o peso de dois, de duas sílabas, pe–neu. É assim que Ngomené e tantos outros vêem esse elemento da roda de carro.
Já cheguei mesmo a pensar que tivesse vindo de Portugal, mas os de lá têm apenas uma sílaba ‘pneu’. Ou terá o Ngomené aprendido isso das telenovelas brasileiras?! No Brasil, por exemplo, também tem duas sílabas, com a diferença no som ‘i’, ou seja, ao invés de peneu, lá se diz ‘pineu’.
Claro que o factor peso silábico não teve qualquer influência. Pegou a chave de rodas, montou o macaco, posicionou os calços e lá trocou. «Foi fácil», assegurou.
E eu confirmo. São poucos os que facilmente lidam com esse tipo de encontros consonantais. No Brasil, repito, a coisa é muito mais séria. Eles, por exemplo, acham um “abisurdo” (absurdo) que um “adivogado” (advogado) esteja envolvido em actos de “corrupição” (corrupção).
Em Angola não é diferente. Muitos “não aquerditam”(acreditam) que haja homens a vestir “bulusa” (blusa).
1 «Estar tudo bala» = «Estar tudo bem», na gíria luandense.
in semanário Nova Gazeta, de Luanda, publicado no dia 24 de abril de 2014 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.