«Dizem que a palavra [escrúpulo] foi usada pela primeira vez por Cícero, em sentido figurado, para exemplificar a sensação de desconforto e de ansiedade próprias de quem se sente incomodado por alguma coisa.» Algo cada vez mais raro nos tempos que correm escreve o autor nesta sua crónica dada à estampa no jornal "i" de 27/11/2014.
Escrúpulo é algo que [Portugal] está a perder. Ou já perdeu. Políticos, empresários, altos membros da administração pública, jornalistas, já não conhecem qualquer tipo de hesitação nem têm problemas de consciência quanto à correcção ou incorrecção daquilo que fazem ou pretendem fazer, não ponderam moral ou eticamente gestos e comportamentos. Vale tudo.
Vale mesmo tudo: usar, vender ou facilitar o uso e a posse daquilo que é público; burlar o fisco; comprar consciências e informação; branquear capitais; corromper e ser corrompido. A falta de escrúpulo é directamente proporcional ao empenho que se põe em alcançar os objectivos consagrados pelo sistema: dinheiro, fama, poder, mais dinheiro, mais fama, mais poder.
O escrúpulo tende a desaparecer porque é o receio do engano, a vacilação, o cuidado, o zelo, a meticulosidade. Dizem que a palavra foi usada pela primeira vez por Cícero, em sentido figurado, para exemplificar a sensação de desconforto e de ansiedade próprias e quem se sente incomodado por alguma coisa. Esta «alguma coisa», na origem, seria scrupulus (diminutivo de scrupus), uma pequena pedra que pode ser um tormento se sentida dentro do sapato ou na sandália. O portador do scrupulus não consegue conviver durante muito tempo com a razão do seu desconforto. É capaz de tudo para se livrar dela.
A generalizada falta de escrúpulo mina a credibilidade do sistema democrático. A crise não é política nem financeira. É moral e civilizacional. Não deixará vencedores.
texto publicado na coluna do autor O Ponto do i, no jornal i, de 27 de novembro de 2014, com o título original "Escrúpulo". Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico seguida pelo jornal.