A prosopopeia contemporânea vai além dos animais das fábulas, havendo também objetos que pensam, agem e falam à semelhança das pessoas, como o "carocha"/"fusca" Herbie ou os carros angolanos, que dormem na rua. Mas aquilo que o Professor Ferrão explica, em mais uma crónica de Edno Pimentel, é o uso do verbo dormir para referir passar a noite, seja para os carros estacionados ou para os guardas em serviço noturno.
«E eu, cheia de pena do carro. Ali fora, das 20 horas às seis da manhã, sem cobertor, nem almofada. Devia ter sentido muito frio. E os mosquitos…?!»
Foi o desabafo – irónico, claro – da minha amiga irlandesa Chris sobre uma conversa com o agente da segurança do prédio em que estava hospedada. Como era nova em Angola, queria perceber um pouco das coisas por aqui. E perguntou-lhe sobre a quantidade de carros na rua durante a noite, se não havia estacionamentos suficientes ou garagens nos edifícios.
Mas o que o jovem da protecção respondeu foi: «Os carros dormem aqui mesmo na rua.» A Chris contou-me também que, num outro dia, ouvira o segurança dizer que iria «dormir de serviço» na terça-feira.
Segundo a Chris, na Irlanda, os carros dela não dormem fora de casa. Passam a noite na garagem. Por uma questão de segurança. Muitos rapazes fazem grafites, e os custos com a pintura fazem toda a diferença.
Em Angola, os carros, quer nas garagens, quer nas ruas, não dormem. À semelhança da Irlanda, os carros passam a noite em algum sítio.
E o segurança por pouco perdia o emprego por dormir de serviço. Não se pode dormir de/em serviço. Sobretudo os agentes da segurança.
Desfeito o equívoco, concluiu-se que o agente iria trabalhar em regime de turno durante a noite. Portanto, convém dizer: «Quando trabalho à noite, durmo durante o dia todo»; «Os nossos carros passam a noite aqui fora.»
In jornal Nova Gazeta, de Luanda, na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.