Crónica publicada na revista Caras de 1/11/2014, na qual a psicóloga clínica e psicoterapeuta Isabel Leal propõe uma análise do que deixamos subentendido quando proferimos, com ironia ou sincero espírito de ajuda, o enunciado «esteja descansado», recorrente no português de Portugal.
«Não se preocupe, fique descansado!» Quantas vezes disseram? Quantas vezes ouviram?
Quando se pretende apaziguar alguém, travar uma queixa ou uma explanação detalhada e fastidiosa; quando se quer demonstrar interesse ou rematar uma conversa, lá surge o «esteja descansado».
Usamo-lo querendo dizer a alguém que não se deve agitar, preocupar, empolgar com um dado assunto. Usamo-lo deixando implícito que se vai tratar do assunto. Usamo-lo a significar que o nosso interlocutor não tem que fazer mais diligências ou apresentar mais argumentos.
Usamo-lo, em vez do acalme-se, eventualmente mais imperativo. Usamo-lo uma e outra vez, como expressão idiomática que é, mas, ainda assim, mais do que invocando uma qualquer preocupação com o descanso do Outro, demonstrando uma curiosa forma de lidar com aquilo que poderá vir a ser uma atitude agressiva.
Se somos campeões nas agressividades indiretas, nas bocas, nas ironias e nas críticas veladas; se somos desconfiados e maldizentes nas costas e nas ausências dos nossos alvos, no frente a frente, na relação direta inibimos a assertividade, evitamos os conflitos e as discussões, arredondamos as expressões de desacordo e tendemos para uma atitude contida e até polida.
Aproveitamos o trânsito, o futebol e a política para exprimir de forma intensa e dirigida a nossa agressividade. Aí insultamos sem pudor pessoas desconhecidas, despidas de características e identidade próprias e imputamos-lhes, sem hesitação, os maus fígados, os maus caracteres, os maus vícios, a estupidez, a desonestidade e tudo o mais que nos der jeito para justificar a intensidade dos nossos ataques.
Parece que as sociedades funcionam assim mesmo. Parece que precisamos de bodes expiatórios, criaturas desconhecidas ou diferentes, em que concentremos a nossa agressividade para o resto do tempo e no resto das circunstâncias sermos, senão bem-educados, pelo menos socialmente aceitáveis.
Mas talvez este assunto seja mais um em que se conclua: «Não se preocupe, fique descansado!»
crónica publicada em 1/11/2014 na coluna "Caras Psicologia" da revista Caras, com o título original «Esteja descansado!».