Crónica que o historiador e político Rui Tavares publicou no jornal Público em 30/11/2015 a propósito da tomada de posse de um novo governo em Portugal, em 26/11/2015, acontecimento que também surpreendeu por romper com um velho hábito linguístico português.
Segundo ouvi na rádio, não foram mencionados os títulos académicos dos novos ministros e secretários de Estado durante a tomada de posse do novo Governo. Tentei depois procurar confirmação na imprensa escrita, mas não vi qualquer menção a este facto.
A ser verdade, é uma revolução. Por ter acontecido e por não ter sido notado, o que significa que pode estar em vias de normalização o tratamento igualitário e republicano pelo nome próprio.
Ainda há semanas, na tomada de posse do penúltimo Governo, tive pena dos fugazes ministros e secretários de Estado cujos nomes foram precedidos, na leitura protocolar, por extensos professores e doutores e professores doutores engenheiros. Em vez de enobrecer os futuros governantes, a pompa e titulatura tornava-os ridículos. Demoraram mais tempo a ser empossados do que a conhecer os dossiers do ministério.
A utilização excessiva de títulos académicos em Portugal é não só desnecessária como perniciosa. Remete para um tempo em que o título académico era raro e servia como forma de distinção para uma elite que, ao invés de puxar a maioria do país para cima, o empurrava para baixo. Com a democratização do ensino superior, essa mesma elite queixava-se até que havia “doutores a mais”, o que dificultava a tal distinção, ao passo que nos ambientes profissionais o resto da população utilizava “doutores e engenheiros” como uma forma veladamente insultuosa de destratar os superiores hierárquicos todos por igual. A insistência nos títulos como forma de tratamento é servil, trabalhosa e repetitiva. É, além disso, uma marca de que se preza o estudo e o conhecimento não por si mesmos mas por todas as razões erradas.
Nunca nada recomendou este costume mas, com a generalização do acesso ao ensino superior, ele é simplesmente impossível de seguir. Talvez por isso, os títulos passaram agora a ser dispensados por comentadores e jornalistas através de critérios já não académicos mas de geração, poder ou reverência, com ou sem intenção política, mas de forma cada vez mais arbitrária. Marcelo Rebelo de Sousa, que tem um doutoramento, é “o Professor Marcelo”. Mas António Sampaio da Nóvoa, que tem dois doutoramentos, é simplesmente “Sampaio da Nóvoa”. Há uns tempos fui a debates com Marinho Pinto e Joana Amaral Dias. Marinho Pinto, que é advogado, era tratado por “o Doutor Marinho e Pinto”. Joana Amaral Dias, psicóloga, era “a Joana”. Vamos simplesmente acabar com isto, e de uma vez por todas?
O herói que teve “razão antes de tempo” nesta história foi o ex-Ministro da Economia do antepenúltimo Governo, Álvaro Santos Pereira, cuja insistência em ser tratado somente por “Álvaro” lhe valeu na altura uma risada geral. Como se se tratasse de um idiota um homem que queria, honra lhe seja feita, deixar bem claro que não era mais do que os outros.
Já que esse bom exemplo não transitou do antepenúltimo Governo para o penúltimo, ao menos que o sinal dado pelo agora Governo na sua tomada de posse se torne regra e faça história também neste particular. Teremos assim a primeira ministra negra, a primeira secretária de Estado cega, o primeiro secretário de Estado cigano – e o primeiro Governo sem doutores.