«Em pleno século XXI, também significamos e lemos o mundo em português nas esferas física e digital, visto que cada vez mais estão imbricadas as vidas on-line e off-line. »
O célebre pedagogo e pensador brasileiro, Paulo Freire, em um dos seus livros mais difundidos, A importância do ato de ler1, afirma que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Os significados dessa afirmação são múltiplos, e logo nos fazem compreender que qualquer ação de interação com o mundo, como ler, escrever, ensinar, aprender, conversar, amar, viver é sempre uma ação situada, contextualizada ao nosso entorno social, cultural e político. Nós agimos no mundo através da linguagem e ela não é neutra e nem desvinculada dos sentidos que construímos a partir de nossas experiências individuais e coletivas. Ler o mundo representa uma atitude libertária e emocionante, que nos prepara para compreender, de modo profundo, os sentidos de nossa existência e das outras pessoas com as quais interagimos. E nesse exercício de interpretação está a língua que nos traduz, o português.
As paisagens linguísticas das cidades são um bom exemplo de como representamos e damos sentido à nossa existência, onde se mesclam cenas, acontecimentos, imagens, textos diversos, revelando variados matizes da alma e da cultura das gentes que ali habitam. Ler os nossos espaços de vivência, as paisagens do dia a dia, exige de nós uma grande sensibilidade e capacidade de tradução constantes, em um mundo cada vez mais multilíngue e multicultural. Assim, produzimos significados através do uso de múltiplas linguagens, verbal, visual, sonora, sensorial, todas elas mediadas pelas línguas que falamos, como o português, e pelas culturas que nos abrigam. Por isso, ler o mundo em uma cidade angolana será uma experiência diferente de uma cidade brasileira, portuguesa ou caboverdiana, porque as percepções do mundo e os modos como usamos a mesma língua são profundamente marcados pelo que somos, individual e coletivamente. Nesses espaços, o português está ali, pulsando, junto com muitas outras formas de semiose e, inclusive, dialogando com muitas outras línguas.
Em pleno século XXI, também significamos e lemos o mundo em português nas esferas física e digital, visto que cada vez mais estão imbricadas as vidas on-line e off-line. São, por isso, multidimensionais e multissemióticos os textos que compõem o nosso cotidiano. O texto, compreendido em toda a sua amplitude, não se restringe mais ao texto verbal, ao livro, à revista, à página em papel, mas a variados modos de construção semiótica e de representação, onde a língua se une a uma infinidade de recursos, tantos quantos nos levarem a nossa imaginação e a nossa capacidade de tradução.
1 FREIRE, Paulo. A importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados/ Cortez, 1989.
Áudio disponível aqui:
[AUDIO: Edleise Mendes – Ler o mundo em português]
Crónica incluída no programa Páginas de Português, transmitido pela Antena 2 em 29 de janeiro de 2023.