A errada conjugação do verbo atrever-se, no pretérito perfeito do indicativo assinalada em mais uma crónica do autor sobre os usos do português em Angola publicada originalmente no semanário luandense "Nova Gazeta", do dia 20 de maio de 2015.
Para o estudante, tratava-se de uma boa experiência a interacção que os alunos devem ter com o professor. Para ele, «quanto mais próximo dos alunos estiver o professor, mais facilmente conseguem esclarecimento para as suas dúvidas e podem até mesmo criar gosto pela disciplina».
E o professor concordava. Segundo ele, é bom quando os alunos colocam as suas dúvidas e recebem esclarecimento imediato. «Gosto de alunos ousados. Alunos que fazem perguntas construtivas e que ajudam os outros a aprender também. Assim evitamos dissabores nos exames», diz o professor.
«Professor, o que são ‘dissabores’?”, questiona um estudante que aproveita a brecha para ‘bombardear’ o professor que, por sorte, estava à altura para responder aos ‘ataques’.
«Esse é que é professor. Não é como o de Informática que não deixa ninguém falar na aula dele, e parece até que só ele é que sabe», observa uma estudante.
Mas o tempo passava e 30 minutos depois de ter entrado na sala, ainda não tinha sequer dado início à aula que preparara para aquele dia, por causa da ‘chuva’ de perguntas dos alunos.
«Ok, turma. Por hoje, chega de perguntas. Guardem as restantes questões para o final da próxima aula, está bem?», sugeriu, avançando que daquele jeito “não iriam para muito longe”.
«Então, quem mandou se atrevir? Aqui, quando começam a perguntar, mais ninguém se quer calar», murmura uma estudante.
Claro que ninguém mandou o professor ‘se atrevir’, nem precisava que alguém o fizesse. Como professor, ele podia sim, sempre que quisesse, ‘atrever-se’ (= ter coragem para enfrentar situações difíceis) a moldar a sala à sua maneira, a dar e receber sugestões que possam contribuir para o sucesso das aulas.
Já agora, é importante não confundir as coisas. Dar abertura à turma para apresentar as inquietações não tem nada que ver com ‘atrevir-se’, porque esta palavra não existe. A que existe é ‘atrever-se’, que tem origem latina (attribuere). Não tem qualquer relação com o verbo ‘vir’ nem com o ‘ver’. Isto significa, por exemplo, que no pretérito perfeito deve dizer-se «ele atreveu-se», e não «ele atreviu-se».
Crónica publicada no semanário luandense Nova Gazeta, no dia 20 de maio de 2015, na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.