Crónica do escritor português Miguel Esteves Cardoso sobre uma locução sinónima de talvez e muito característica do estilo coloquial em Portugal (texto publicado no jornal Público, em 13/12/2015)*. Que significam hoje «se calhar» e outras expressões em que entra o verbo calhar?
As expressões mais tristes são as que se perdem devagar, diluindo-se até deixarem de dizer a coisa que queriam dizer.
«Se calhar» era uma expressão útil e prudente que queria dizer «se, por acaso, eu entrar nessa calha» ou seja, «se me der jeito, se estiver para aí virado, se for esse o meu destino».
«Se calhar» foi depois despromovido a mero «talvez». Já não era preciso a coisa calhar – já tinha calhado. Ao ver a camisola azul depois da verde – e arrepender-se – o freguês diz «se calhar gosto mais da verde, não sei...»
Hoje em dia «se calhar» já não se refere a qualquer futuro nem tão-pouco transmite qualquer dúvida. «Se calhar», em 2015, já pode querer dizer «afinal». «Se calhar prefiro a camisola verde...» traduz-se por «desculpe lá, senhor, mas antes quero a outra que já tinha vestido».
«Se calhar» faz falta porque não comprometia. A pessoa que "se calhasse" passava lá por casa quando fosse a Lisboa não era castigada por não aparecer. «Não calhou» não tinha nada de mal ou de desculpa. Era simplesmente «não tive tempo; acabei por ir por outro caminho; meta-se na sua vida, se fizer favor...»
O «se calhar» antigo e socialmente valioso pertencia à visão modesta e «seja o que Deus quiser» do papel de cada pessoa na vida. Hoje já não se gosta dessas fatalidades e dessa noção de não fazer ideia como elas nos vão morder amanhã.
Se calhar, no sentido actual, as certezas de agora são mais incertas do que as mais velhas dúvidas do mundo.
* Manteve-se a norma ortográfica anterior ao AO, conforme o original, seguida no jornal português.