Entre os múltiplos sentidos do verbo sentir, em Angola este verbo pode ser usado também para referir o ato de desforra, aplicando de um modo transitivo o significado de sentir como «sofrer a ação de». Nesta crónica do Professor Ferrão, Edno Pimentel conta-nos como aqueles que "se sentem" aproveitam a oportunidade, quando esta surge, para fazerem os outros senti-los de volta.
Era no segundo andar onde todas as manhãs os jovens do prédio se reuniam para jogar o ludo, também conhecido por "não-te-irrites". Ficava com a impressão de que muitos jovens dormiam torcendo para que as poucas horas de sono a que tinham direito se reduzissem a minutos para lá estarem novamente.
A partir das oito, um grupo de seis a dez jovens, entre os 19 e os 30 anos, preparavam-se para mais um dia de ‘trabalho’. O "não-te-irrites" tornou-se, para alguns deles, o ganha-pão. Muitos deles, em algumas horas, conseguiam juntar o suficiente para o almoço de uma família simples. Já vi rapazes faltarem às aulas porque não deram por o tempo passar. «Olha a sena que vai bondar o Papoite», ameaçava um dos jogadores ‘matar’ o mais-velho em campo.
O Papoite, que também vivia naquele prédio, tinha mulher e filhos, mas não se importava nenhuma. Quis ele lá saber da família!? «Cassule, agora vais me sentir», alertava aquele quase quarentão, que trocou a talocha e a colher de pedreiro por dados.
Enquanto isso, a esposa, que já não se contentava com a nova ocupação do marido, preparava as coxas na véspera e, de manhã cedo, vendia a magoga.
«Mana Guida, prepara só duas magogas com gindungo, sem ketchup, nem maionese», pede uma cliente. «Mas só vou pagar mais tarde. Agora só tenho dois mil pegado», diz uma outra.
Às 16, quando Mana Guida regressasse à casa, lá estava o Papoite com os miúdos a jogar o "não-te-irrites". «Esse aí não vai acreditar quando eu lhe disser que acabou», desabafa com os olhos molhados a uma amiga. «Ele vai me sentir. Esperem para ver».
E não demorou muito para que uns começassem a sentir os outros, isto é, para uns começarem a recuperar o que perderam.
O Cassule ‘sentiu o Papoite’, ou seja, o Papoite desforrou-se e venceu o jogo. Mas não ficou por aí. O Papoite, mesmo com o dinheiro da batota, também sentiu a Mana Guida. Com os lucros das vendas da magoga, comprou um terreno, construiu uma casa e foi-se embora.
Quando a Mana Guida e o Papoite disseram «…alguém vai me sentir…», queriam dizer que se iriam desforrar, iriam recuperar o (que estava) perdido.
in jornal Nova Gazeta, de Luanda, na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.