«( ...) Se os nossos adolescentes não usam mais de 300 vocábulos e a leitura não parece atraí-los para corrigir a situação, que irá acontecer-lhes no dia em que começarem a faltar-lhes os nomes para as coisas? (...)»
« Há muitos anos, publiquei um pequeno ensaio fascinante sobre a memória, no qual se dizia que o nosso declínio começa quando, de repente, nos falta o nome para a coisa.
Estamos sentados à mesa e pedimos a alguém que nos passe o... E não aparece a palavra sal, açúcar, o que for, ainda que a tenhamos debaixo da língua. Não há nada mais irritante do que querermos recordar-nos do nome de alguém – um actor, um ex-colega, o oftalmologista que nos atende há anos – e não conseguirmos, mesmo sabendo que, a partir de certa idade, as nossas conversas se enchem de buracos: «Hoje encontrei a..., aquela que é mulher do..., a que trabalhava na empresa de um que era tio da...» Parece uma charada.
Num dia em que descobri a minha mãe nonagenária especialmente abatida, ela contou-me que estava desde manhã a tentar em vão lembrar-se de uma palavra, e eu percebi como esse vazio a diminuía; com calma, lá acabámos por descobrir que não se tratava de nada que fosse preocupante estar enterrado e não vir ao de cima, mas de um vocábulo que era tudo menos evidente – sonegado – e que, provavelmente, muita gente nova desconhece; tal como desconhecerá quase de certeza palavras coloridas e deliciosas que as pessoas da geração da minha mãe têm sempre à mão, mas que infelizmente se estão a perder: fraldisqueira, lambisgóia, sirigaita, pândego, rabina, mafarrico, fedúncia, flausina, pelém, pífio, topete, empáfia, salamaleque, frioleira; ou, para fazer um rapapé à minha mãe, uma expressão que ela usa referindo-se às netas: «levada da breca». Mas há muitas mais caindo tristemente em desuso.
Bem sei que desapareceu o prestígio de falar bem em público (basta ouvir alguns dos nossos políticos...) e que as séries em streaming, as redes sociais e o YouTube têm arrancado cada vez mais jovens à leitura: se, nos anos 1980, estes usavam cerca de 1500 palavras no seu quotidiano, o número baixou actualmente para cerca de 300 palavras (e algumas são fogo, bué, fixe, ou simples muletas como meu ou tipo).
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, que nem sequer é o mais completo de sempre, tem 228 000 entradas, e o mais modesto Priberam, que pode consultar-se gratuitamente online, tem, mesmo assim, 115 000. Se os nossos adolescentes não usam mais de 300 vocábulos e a leitura não parece atraí-los para corrigir a situação, que irá acontecer-lhes no dia em que começarem a faltar-lhes os nomes para as coisas? O silêncio? Adeus, futuro.
Crónica que a editora e escritora Maria do Rosário Pedreira escreveu e publicou no Diário de Notícias de 5 de outubro de 2019. Mantém-se a ortografia do original, a qual é anterior à norma vigente.