A locução conjuncional temporal antes que usada erradamente com o verbo na negativa tem o efeito exatamente contrário do pretendido – como se aponta nesta crónica do autor à volta de usos do português em Angola, em época de prendas de Natal.
O receio na verdade não é de não se esquecer. Pelo contrário. No Natal e no Ano Novo, todos, ou quase todos, fazem questão de comprar um presente para o amigo oculto entre familiares, amigos e colegas de escola ou de serviço. Pudera. As pessoas não poupam esforços nem medem o volume dos bolsos para essa época do ano. Parece até que o mundo chegou ao fim e consigo surge a urgência de gastar até ao último tostão.
Mas eu percebo. Não são todos os dias que o ‘Cali se senta no banco’ de modo confortável. Caem os subsídios, o 13.º, prémio dali e daqui... é muita ‘massa’.
Já comprei os presentes para os meus amigos ocultos, embora eles ainda não saibam. Preferi antecipar-me já porque, às vezes, sou tão esquecido que não me lembro do meu próprio aniversário. E por isso mesmo já recebi um aviso: «É melhor comprares o meu presente antes que não te esqueças».
Se for pelo presente, não tem com o que se preocupar. Mas tem te prestar atenção ao que de facto quer que aconteça: se é que eu ‘me esqueça’ ou que ‘não me esqueça’. A avidez e a preocupação são tantas que ao invés de pedirem que as pessoas não se esqueçam, pedem que se esqueçam. Isto é, se eu quero que alguém não se esqueça de algo, não devo dizer «antes que não te esqueças». Deve dizer-se «antes que te esqueças».
Quando queremos prevenir que algo indesejado aconteça usando a expressão ‘antes que...’ o verbo deve aparecer (sempre no conjuntivo) na forma declarativa afirmativa, e não na negativa.
Exemplos: «O clima não está bom. Vou-me embora antes que chova» (não, «antes que não chova»);
«O almoço está pronto. Vamos comer antes que percamos o apetite» (não, «antes que não percamos o apetite»);
«Vou ficar calado antes que seja mal interpretado» (não, «antes que não seja mal interpretado»);
«Tenho de ir agora antes que a loja feche» (não, «antes que a loja não feche»).
Por isso, aí vai o meu conselho: comprem já os vossos presentes antes que seja tarde. Feliz Natal!
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N. E. – Pode encarar-se este uso de não como um caso de negação expletiva, ou seja, o advérbio deixa de ser operador de negação para ocorrer antes como partícula de realce de uma afirmação. A construção referida por Edno Pimentel encontra paralelo na construção francesa «avant que...» seguida da negação expletiva do verbo («avant qu´il ne soit trop tard» = «antes que seja tarde») e pode até refletir algum contacto histórico do português de Angola com o francês falado em África. Note-se, contudo, que, mesmo em português, existem casos de negação expletiva, aceites pela própria norma, como se pode confirmar pela seguinte observação de Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do idioma Português; manteve-se a orotagrafia original): «[...] Note-se que o advérbio não se pode aplicar como partícula de reforço de afirmações. Por exemplo: "Que triste não estaria a pobre mãe!" A negativa não usa-se em afirmação enfática, especialmente em frases exclamativas: "Como me não agarrara... ao chão da vida fácil, inocente e obscura! Como não borbotara em hinos o meu júbilo! Como não saudara com lágrimas de gratidão a aurora...!" (Castilho, O Presbitério da Montanha, i, pág. 99). O povo diz a cada passo: "Não pode deixar de não ser". Mais lógico será escrever – não pode deixar de ser. Mas o povo emprega o não de reforço, como aliás praticam literatos noutros casos. || Agostinho de Campos, ao referir-se a particularidades da linguagem de Lucena (cf. o 2.º vol. pág. XVIII da Antologia Portuguesa), afirma que os passos deste autor com exemplos de não, «são todos ou quase todos formas populares de dizer – populares, mas não incorrectas nem deselegantes – em que a negação aparece para dar à frase vivacidade e energia.»
Texto publicado no semanário luandense "Nova Gazeta", no dia 24 dezembro de 2014, na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.