Um extracto do Dicionário de Paixões do escritor português João de Melo, sobre a «instituição secreta» do erro ortográfico.
ORTOGRAFIA (A): – Dá-se com os olhos nele e já ninguém estranha. Ele está em toda a parte : nos tapumes das obras daqueles bancos solícitos e hipócritas que pedem desculpam pelo incómodo e prometem ser breves a devolver aos peões o passeio público; nos painéis publicitários, nas legendas televisivas, nos placards que encimam os andaimes dos edifícios em construção. Está também nas coisas da Câmara; circula nos autocarros do Porto, de Lisboa e de todas as cidades; foi escrito a giz nos muros — como protesto público, paixão de amor, exercício naïf de pintura e caligrafia. Na província, atravessando as ruas, vibra nas faixas que anunciam arraiais, quermesses, eventos desportivos…
Não conhecem o erro ortográfico?
O maior deles é irreversível. Consiste em não o (re)conhecermos. E esse irreconhecimento fez dele uma instituição secreta.
A correcção linguística e gramatical, pela qual se batem as gerações da exigência e da cultura, é de tal maneira uma raridade deste alegre tempo português, que da nossa indignação vamos todos nós pouco a pouco abdicando. Os professores das disciplinas científicas deixaram de o corrigir — por o não identificarem ou por a ele se terem já conformado. Os das chamadas ciências sociais limitam-se a sublinhá-lo a azul ou a amarelo, com a timidez de quem não tem autoridade nem voz na matéria. Os docentes de língua materna não sabem que peso atribuir-lhe nem se devem considerá-lo como argumento ou ónus de avaliação. Vai sendo um castigo e uma temeridade ser-se professor de Português. Não é só o caso de figurarmos na condição de réus, mas sobretudo o risco de a todo o instante sermos postos em trabalhos e em tormentos. No intervalo das aulas, em plena sala de professores, levantam-se vozes contra a ignorância frásica e a pobreza vocabular dos alunos (dizem-no de dedo apontado a nós, culpando-nos desse crime de lesa-idioma). Nas compridas e presunçosas reuniões de escola, havendo à mão um “purista” da escrita, os outros professores sentem-se dispensados de redigir actas ou quaisquer outros documentos — porque só Deus sabe como é chato escrever comunicados, relatos, actas, postulados pedagógicos, redacções… […]
[Os professores de Português] Incompreendidos tentam não ceder ao desespero. Perderam as ilusões: estão do lado errado de uma cruzada sem sentido. Não sabem que destino dar a tanto erro ortográfico. Eles bem que explicam a diferença entre o “há” do verbo haver e o “à” que contrai uma preposição com um artigo definido. Quanto à conjugação verbal, bem se esforçam os pobres por levar os alunos a distinguir entre “abraça-se” e “abraçasse”. É um inferno de loucos, um mundo de surdos. Ninguém é profeta na sua terra; menos ainda na sua língua.
Aos erros escritos somam-se agora, em grande, profusa e incontrolada abundância, os chamados erros de “ortografia oral”. De que adianta um homem emendar “possamos” por “possamos” ou “traze-a” por “trá-la”, com a respectiva explicação gramatical? Ao cardume dos alunos junta-se a vasta legião dos conspiradores televisivos, radiofónicos, políticos e desportivos — numa imensa epidemia de labregos linguísticos. Quando vejo um atleta aceder a prestar um depoimento, fico logo em guarda: lá vem bombarda! Ouço os yuppies empresariais, os jovens repórteres ou certos representantes das associações de estudantes — e é um pânico. Há tempos, em S. Bento, ao microfone de uma rádio, um rapaz de Coimbra justificava a turbulência de uma manifestação estudantil dizendo que “as pessoas estavam um pouco excedidas”. Mas a uma locutora desportiva ouvi eu que aquela “era uma pista onde a prova tinha sido decorrida…”
A última geração que lê será também a última a não dar erros ortográficos e a fechar a porta atrás de si. Há quem atribua aos escritores toda a culpa desta decadência linguística, acusando-os de prescindir da pontuação e de subverter a sintaxe. Pela parte que me toca, e já que não é pecado pecar, disponho-me a ir à santa inquisição da língua explicar a minha transgressão da norma. Sem dúvida que a minha dupla condição de professor/escritor me levará à fogueira. Mas permitir-me-á também usar a forquilha do Diabo e rir da gramática, do Acordo Ortográfico […]…
In Dicionário das Paixões, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996.