Recebi na semana passada um ofício assinado pelos ministros da Educação, da Cultura e dos Assuntos Parlamentares convidando-me para integrar a Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura (PNL). Aceitei o convite muito penhorado, tanto mais que se prevê a possibilidade de a referida comissão aconselhar na execução do plano e participar em acções e iniciativas que venham a ser lançadas no seu âmbito.
O PNL «concretiza-se num conjunto de medidas destinadas a promover o desenvolvimento de competências nos domínios da leitura e da escrita, bem como o alargamento e aprofundamento dos hábitos de leitura, designadamente entre a população escolar». Da leitura da síntese do relatório que me foi facultada resulta a impressão de que o PNL articula bem as medidas e os objectivos que se propõe.
Na carta que dirigi à ministra da Educação tive, no entanto, ocasião de fazer dois reparos genéricos. O primeiro tem a ver com a reformulação dos programas escolares de Língua Portuguesa: o PNL não poderá ser levado a bom termo enquanto não se fizer essa reformulação, reabilitando devidamente o papel da Literatura no ensino da língua. Sobre este ponto, muito se tem escrito, pelo que não vale a pena desenvolvê-lo aqui. O segundo reparo manifestava a minha apreensão pela anunciada adopção do sistema de testes de escolha múltipla (multiple choice) nos exames de Português. Artigos de Maria do Carmo Vieira e de Eduardo Prado Coelho já falaram disto, que, diga-se desde já, se afigura absolutamente contraproducente quanto aos objectivos visados pelo PNL. Leio agora, no suplemento Educação do JL, de 10 a 23 de Maio, uma entrevista de Paulo Feytor Pinto (PFP), presidente da Associação de Professores de Português (APP), que me deixa ainda mais preocupado.
PFP procura justificar o novo sistema pela distinção entre "avaliação da leitura" e "avaliação da escrita", por, diz ele, "o facto de se avaliar a leitura através da escrita faz com que por vezes não saibamos se os erros ou incorrecções se devem à dificuldade de compreender ou à dificuldade de produzir um texto". E considera que as perguntas "que são assim são para um tipo de avaliação específica que é a avaliação da leitura", embora também possa haver "perguntas relacionadas com a avaliação da leitura que não sejam de resposta fechada".
A justificação não colhe. Ao nível escolar daquilo que é de exigir-lhe, pois não é de esperar que se exprima como Demóstenes, se um aluno tem dificuldade na escrita é porque não aprendeu bem... Se não teve aproveitamento e não é capaz de produzir um texto, o teste de resposta múltipla só vai dissimular esse problema e contribuir para um resultado injusto. Isto para não falar na situação escandalosa de o aluno ter 25% de hipóteses de acertar logo à partida (em quatro quadradinhos para pôr a cruzinha, um deles há-de corresponder à resposta certa...). Além disso, a pergunta, a que terá de responder com a tal cruzinha, não lhe dá qualquer possibilidade de desenvolver uma leitura diferente da insinuada na própria questão. O sistema cerceia a manifestação da personalidade do estudante e da sua capacidade interpretativa. O examinador não avalia assim nada de relevante.
Há também uma clara e chocante depreciação do papel da memória na aprendizagem: diz PFP que até agora só são utilizados como textos de referência os dados na aula, "o que faz com que não estejamos na realidade a avaliar a competência de leitura. Avalia-se se [os alunos] conseguiram memorizar o que foi dito na sala de aula sobre os textos". Então não é também para isso que eles têm aulas? Isto é verdadeiramente bizarro numa altura em que se valoriza cada vez mais o papel da memória na aprendizagem... Sem recurso à memória é que não há nem capacidade de leitura, nem capacidade de escrita.
Se o novo sistema se aplica à interpretação dos conteúdos dos textos, ele só irá reforçar a lei do menor esforço, a pretexto de dispensar os alunos de se exprimirem correctamente, de se lembrarem seja do que for e de mostrarem o que sabem. Se se aplica apenas à gramática, não faz qualquer sentido a distinção entre avaliação da leitura e avaliação da escrita e cria um perigoso precedente que virá a alastrar inevitavelmente às outras áreas da disciplina.
Continuam os equívocos pedagógicos numa área tão sensível. Não sei que luminárias os engendram. Mas sei que não se pode aceitar que os exames de Português obedeçam ao princípio do Totobola.