O Ministério da Educação pode dar-se ao luxo de ser selectivo porque o ensino superior público continua a formar professores que nunca terão lugar no sistema educativo
O Ministério da Educação não confia no Ministério da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior. Ou, mais precisamente, os responsáveis políticos pelo ensino básico e secundário olham com sérias reservas para as competências adquiridas pelos licenciados dos cursos de formação de professores. Só esta suspeição pode justificar a imposição de testes específicos a todos os que acabam esses cursos e pretendem ingressar na carreira docente. As notas finais do curso de pouco servem. O saber e a experiência acumulados nos estágios profissionalizantes são para esquecer. Quem quiser ser professor no futuro próximo terá primeiro de se licenciar para depois se submeter, pelo menos, a mais duas provas de ingresso na carreira docente. Mesmo que obtenham um 20 à saída da universidade, os candidatos terão, no mínimo, de ser classificados com 14, numa escala de 0 a 20, nos novos testes. Se um candidato à docência de Português obtiver a nota máxima na avaliação do domínio da língua e na capacidade de manifestar raciocínio lógico e, por exemplo, 13 na prova destinada a medir conhecimentos científicos específicos, o sistema não terá lugar para ele. Faz sentido?
Numa primeira apreciação, é fácil enaltecer a preocupação em aumentar a fasquia de exigência aos que se candidatam à carreira docente. Num mercado de trabalho que cada vez mais compete pelas qualificações, o sistema educativo não pode ser um vazadouro. Percebe-se, pois, que o ministério procure, com as provas exigidas pelo renovado estatuto, uma nova geração de professores mais adaptados à complexidade do nosso tempo. Um professor de Português ou de Química deve dominar a língua materna, ser dotado de "raciocínio lógico", falar inglês e estar familiarizado com as novas tecnologias de informação. Mas será mesmo necessária uma nova prova para avaliar estas competências? Não é lógico que os cursos superiores as avaliem, seja no decorrer dos testes, seja no acompanhamento de estágios curriculares?
O ministério só se pode dar ao luxo de procurar a selectividade porque o ensino superior público continua a formar professores que nunca terão lugar no sistema educativo. Como a quantidade é, por regra, inimiga da qualidade, há que submeter os licenciados a uma nova avaliação. Uma aberração que alimenta o desperdício de recursos e desfaz as expectativas de milhares de jovens. Não deverá haver um único responsável político do sector que não o saiba. Mas está para vir o dia em que alguém seja capaz de dizer que, neste particular, a autonomia das universidades é sinónimo de irresponsabilidade.
Um pouco de sensatez recomendaria que a preocupação com a qualidade dos professores começasse a montante. Reduzindo as vagas dos cursos para a docência e, por consequência, elevando as médias de entrada dos cursos. Não o fazendo, o Estado produz carne para canhão. Tolera que uma multidão de alunos acalente a esperança de ser professor para depois lhe impor uma nova barreira de acesso à profissão. Uma opção absurda. E imoral.
Se houvesse coragem de adequar a oferta de vagas nas universidades às necessidades do sistema educativo, talvez o Ministério da Educação deixasse de ter razões para acreditar que há licenciados incapazes de exercer funções docentes.
Não encarando o problema em toda a sua dimensão, o ministério desresponsabiliza-se e tenta resolver o suposto défice de qualificação dos licenciados exigindo-lhes que provem o que, por natureza, deviam saber. É como tapar o sol com uma peneira. É bom que o país tenha garantias de que não vai haver professores sem saber escrever português ou a dar erros científicos nos testes que apresentam aos alunos. Mas, ao tentá-lo com um remendo, evita-se uma reforma de fundo que garantiria os mesmos resultados sem causar tanto desperdício de recursos nem tantas ambições frustradas.
in Público de 3 de Setembro de 2007