À memória de Dona Odete, minha inesquecível professora da Primária; do prof. Emílio Meneses, gramático, que fizera do ensino do Português um acto poético; e do Padre Mateus Rosa, que me ensinou latim com a sorridente paciência de um beneditino.
E em louvor dos professores portugueses.
Os infortúnios da desordem política conduziram o sistema educativo [português] à corda bamba do funâmbulo. Ninguém sabe o que vai acontecer em cada ano lectivo. E as deficiências do poder executivo, seja ele do PSD ou do PS, são dissimuladas através de monstruosas campanhas contra os professores. Segundo o poder político, os professores são os causadores de todos os males, e os Governos constituídos por pessoas imaculadas, que nunca se enganam, jamais se equivocam e em tempo algum têm dúvidas. No entanto, os problemas vêm de muito atrás. Veiga Simão revelou-os há mais de trinta e cinco anos, e chegou a indicar soluções. Nada foi feito, a fim de se obstar ao desastre anunciado. Muitos alunos trepam à universidade sabe-se lá com que manigâncias, ignorando praticamente tudo acerca do mais rasteiro conhecimento humano.
No caso do Português, o desastre não é só catastrófico: chega a ser afrontoso. Sendo aquela a disciplina fundamental para todas as outras, a conclusão é perturbadora: a esmagadora maioria dos alunos não está preparada para ler, entender, compreender e interpretar o mais ameno formulário. Acontece um porém: os jornais que verberaram o facto de as notas negativas a Português terem duplicado no 9.º ano não estão isentos de praticar a recta pronúncia e o idioma acertado. O incidente perturbador é que esses jornais tomam-se muito a sério, fazendo o papel de equilibradores quando, na realidade, desequilibram o mais elementar bom senso.
Os leitores de jornais confrontam a sua ingénita preguiça mental com a preguiça profissional de quem não possui a precaução liminar de conhecer, estudar e amar o idioma. Os leitores adoptam os tiques daqueles para os quais a facilidade e o simplismo constituem as formas mais altas de referência. Garrett, nosso maior, ensinou, em Da Educação, o seguinte: «Jamais conhecerá bem as cousas o que não conhece bem as palavras». No gabinete de Acúrsio Pereira, chefe da Redacção de "O Século", matutino onde aprendi o ofício de noticiarista, havia esta inscrição, também de Garrett: «Fugi de palavras antiquadas, mas não desprezei as antigas».
A linguagem usada na Imprensa, na Rádio e na Televisão é deplorável, chã, simplória, e assustadoramente pobre. E, Dilecto, adicione à lista um numeroso grupo de escritores, alguns muito premiados, muito traduzidos, muito louvados e muito, muito tudo - mas com consideráveis e insanáveis conflitos com a ortografia, a morfologia e a sintaxe. Perante tal panorama pode-se exigir aos alunos a exemplaridade de uma "ordem" que em si mesma se não respeita?
Os moços saem do Básico sem perceber nada dos rudimentos da aprendizagem. As sucessivas alterações ao sistema de ensino foram não apenas redutoras mas, sobretudo, criaram a maior das confusões em professores, alunos e pais. Os políticos portugueses, responsáveis pelo Ensino, nos últimos trinta anos, deveriam estar no banco dos réus, culpados de indignidade nacional. Nada me prende ao passado, mas a verdade é que, outrora, saíamos da Primária muito mais bem apetrechados do que a maioria dos alunos, actualmente em passagem para a o «ensino superior» - o que quer que a expressão queira significar.
Lembro-me de a Dona Odete exigir que memorizássemos o abecedário ao contrário: começando do Z e terminando na letra A. A imposição pareceu-nos um capricho da prepotência. Muitos anos depois, conversando, no Rio de Janeiro com o sábio professor Celso Cunha (autor, com Lindley Cintra de um magno tratado gramatical), que me convidara a jantar em sua casa, e contando-lhe a bizarria, ele explicou-me que o exercício determinado pela Dona Odete era óptimo para a fixação memorial. Aliás, era uma espécie de mnemónica, usada na Antiguidade Clássica como componente fundamental da Retórica. Com um sorriso extremamente bondoso, mas a que não faltava a força inabalável da vontade, o professor Celso Cunha concluiu: «Não se esqueça, meu caro amigo, de que a memória é perigosa».
Eu próprio dei aulas de Língua e Cultura Portuguesas numa universidade privada. E tomei consciência das dificuldades dos estudantes, cotejados com as questões mais elementares. Que fiz? Ignorei a normativa, dei as aulas à minha maneira, levei livros de Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, Sophia, Natália Correia, Nemésio; falei do conto português, de Fernão Mendes Pinto e da primeira reportagem escrita na nossa belíssima língua: a Carta a Dom Manuel Primeiro, ou Novas do Achamento, de Pêro Vaz de Caminha, nosso par, nosso Mestre; introduzi Aquilino e Tomaz de Figueiredo, e só a seguir li-lhes, e convidei-os a ler, Ramalho, Fialho e Eça, o jornalista de génio.
Peço licença para ser imodesto: as aulas foram um êxito, muitos dos meus alunos trabalham nas televisões e nos jornais, dois deles nas rádios. Ainda hoje me escrevem, me telefonam, me pedem ajuda. E estarei sempre à disposição deles, na medida das minhas reduzidas possibilidades. Para aprender (o ensino é, também, talvez sobretudo, uma aprendizagem), o importante será: conhecimento, paixão e vontade. A teimosia do conhecimento conduzir-nos-á aos outros patamares. Sei do que falo. E se falo destas questões com ardor, não apresento desculpas. O Português é a minha razão de ser, e conservo de todos aqueles autores que citei, e de muitos mais, uma lembrança enternecida.
Amiúde, renovo essas antigas experiências de leitura, e nunca me arrependi: nelas encontro respostas para interrogações que faço ao meu tempo, e lenitivo para as angústias que a vida portuguesa, no todo, me provoca e a milhões de outros como eu. Há dias, a um jovem repórter que me procurou em minha casa, disse-lhe: «Ser jornalista não é, somente, um ofício: é uma condição». Uma condição que se qualifica a si mesma no desenvolvimento das suas capacidades intelectivas. Um jornalista culto e com memória é um homem perigoso. Não se traveste em grande alma ou em espírito superior, mas não abdica jamais da conivência com o protesto, da cumplicidade com os mais desprotegidos, e da procura dos meandros nos quais a realidade se oculta.
Adianto, meus Dilectos, que devo essa consciência das coisas e das pessoas àquelas e àqueles que, em distintas ocasiões da minha vida, e em diferentes instituições de ensino, enfrentando todos os riscos, desafiando todas as vicissitudes, me legaram a noção de que o saber é uma viagem sem epílogo.
Artigo de opinião publicado no "Jornal de Negócios" do dia 21 de Julho de 2006